À queima-roupa

Horta Seca, Lisboa, 16 Novembro

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oram cinquenta e duas as vezes que me sentei a olhar para os dias como se merecessem a pena, as penas. Quando o Carlos [Morais José] me convidou, logo ali à mesa me arrependi. Acabava de aceitar mais um afazer, de hora marcada, outra linha que ameaçava morte, ainda que fosse a de cada dia, daquelas que nos desfazem em desculpas. Ando feito num oito, às voltas com o tempo, que nunca soube gerir, percebo melhor agora graças a este «diário». A preguiça já não se chega a mim, pelo menos sem culpa. Para quê complicar mais? Achei que o demovia com a ideia do diário de um editor – se nem o livro interessa, quanto mais quem o ergue? O Carlos revelou-se temerário ou perdulário, à irónica maneira de um editor. Ano volvido, a cadência da crónica não deixa de perturbar a agenda, a julgar pelos plins de e-mails por responder, das chamadas não atendidas, dos sms que piscam, além das interrupções em contínuo, das travagens bruscas, das multas por excesso, das brigas domésticas, dos prazos perdidos, das cobranças difíceis. Mas a paragem obrigatória acrescenta perna, ampara que nem bengala. Os cinquenta e dois espelhos (semanas ou anos?) raramente me devolveram imagem nítida, nem sei se esticaram a pele prometida na primeira vez. Aliás, a infância explica-nos que as primeiras jamais se repetem, serão sempre segundas e sucessivas, em escada que pode subir ou descer. Ainda assim, o exercício dá-me jeito, ajuda a adivinhar o passado. E a t(r)emer o futuro.

 

Casa da Imprensa, Lisboa, 20 Novembro

Indispensável na geometria social do livro, o cerimonial do lançamento esgota-se, demasiadas vezes, na inutilidade do cumprir calendário, entalado entre a soberana indiferença dos media e a distracção dos interessados. Quando acontece de facto, há uma fresca verdade na primeva e disseminadora leitura do apresentador, e outra mais pesada no porte do autor sofrendo efeitos das presenças e opiniões. Não desprezemos, contudo, a potência dos detalhes significativos. Nesta vez do António [Araújo], que crepusculou agitado, nervoso, saudando pelo nome e em alta voz cada um dos que iam chegando, deu-se em passagem mínima do brilhante texto do professor Jorge Calado, que espelha na perfeição a densidade do ensaio do António, até na emoção com que temperou a objectividade. «Consciência de SituaçãoUm Ensaio sobre The Falling Man é o abstract perfeito de um evento que VERDADEIRAMENTE mudou o mundo e a vida da humanidade. Porquê uma fotografia? Porquê esta fotografia? Nas palavras lapidares de António Araújo, o 9/11 ‘reinstaurou o primado da fotografia como elemento da memória visual’. Por várias razões, entre as quais o facto da fotografia – ao contrário das imagens em movimento do vídeo e do cinema – ser a arte contemplativa do silêncio. Nestas imagens não se ouvem as sirenes e apitos de carros de polícia, bombeiros e ambulâncias, muito menos o estrondo medonho do impacto dos ‘cadáveres iminentes’ (para usar a expressão terrível do autor) no Ground Zero.» Continuou invocando e multiplicando, na sagrada e inteligente maneira de ler como quem amanha terra, semeando e regando, até que solta: «Tal como o precioso ensaio de António Araújo que hoje aqui nos reúne, o museu e zonas adjacentes [do Ground Zero] ajudam a exorcizar as memórias da tragédia que abriu o primeiro século deste novo milénio que – tenho a certeza – ficará por concluir.» Quantos terão dado pela profecia apocalíptica? As razões, conseguidas depois, não têm a ver com Trump ou outros frutos da estupidez, mas com a inteligência artificial…

 

Necessidades, Lisboa, 21 Novembro

Apresentação, na Biblioteca da Rainha, recuperada com cuidado gosto, de outro volume da Colecção Fósforo, evocando em sequência outra revolução, a Russa de 1917, a partir do testemunho educado e aventuroso de Batalha Reis, representante diplomático na convulsão. Curiosa coincidência, esta, de que só me dou conta na mesa. Já não me escapou, na Introdução de Pedro Aires Oliveira, a este «Dos Romanov a Lenine – Relatórios de Jaime Batalha Reis Sobre a Sua Saída da Rússia em 1918», a referência a Corto Maltese, feito sinónimo de aventura riscada sobre mapas e História. Noto a manifesta satisfação da Margarida [Lages] com isso, a quem esta edição tudo deve. Mas esqueci-me de apontar o foco a Rafael Bordalo Pinheiro, que fez a banda desenhada portuguesa dar primeiros passos com famosa «reportagem» às Conferências do Casino, de que Batalha Reis foi instigador. Apesar de estudos recentes sobre alguns aspectos da sua acção, continua a faltar-nos biografia compreensiva de tão fascinante quanto literária figura. Por quê esta alergia nacional à biografia?

 

Bairro, Lisboa, 21 Novembro

Eis-me atirado, de copo na mão, ali para as Galegas das escadinhas a discutir, outro modo de subir ou descer. O «Relvas morreu» da mensagem soltou asneiras que ecoam, desde então, penteando os paralelepípedos da rua do Notícias, ou a do Lisboa, e a avenida do Se7e, sem esquecer a do Inimigo. Teve uma vida de papel, muito livre e frágil, mas capaz de cortar cerce. Lisboa-a-puta não se reconhecerá mais na noite de ganga com que a pintou, cenário maior de deambulações a pincel. O virtuoso-a-dias (vá Fernando, que o parêntesis está sempre a pedir um fim: 1954-2017) meteu-se todo na bd, apenas outra forma desenhada de dizer crónica, muito para além da fronteira dos géneros. Também deu um salto ao passado procurar anti-heróis, dos perdidos que definem contornos ou daqueles que sabem andar na linha do horizonte. Fez o que lhe apeteceu confundindo bonecos e vida, insuflando-a nas personagens, desenhando a sua a preto e branco, mesmo quando coloria. Viajou e ficou quieto. Morou em barco atracado, cultivou o mau feitio, inventou o verbo arriscar. Foi-lhe madrasta, a vida. Não merecia, ele que a tratou com o devido despeito. Até à vista, meu! (Desenho do próprio na página).

 

Centro Português de Surrealismo, Famalicão, 25 Novembro

Subi a Cesariny, aos Encontros XI, a pretexto de «Afinal o que importa não é a literatura», a hora inteira em que os No Precipício Era o Verbo interpretaram a grande altura os versos da ‘máquina de passar vidro colorido’. Ainda vibro com o diálogo de fragmentos de autoridade e liberdade entre os manos Zé [Anjos] e Carlos [Barretto]. Estou em crer que o próprio se espantaria.

Tanto espanto à mão de semear. A voz do João Peste cavalgando a energia do Ricardo Martins, no Cru da véspera; os versos «burgueses somos nós todos/ou ainda menos» atirados ao ar no cabeleireiro, no talho, no mercado, no carrossel pelo trio Isaque [Ferreira], João [Rios] e Rui [Spranger], mas sobretudo a montra realista da Confeitaria Moderna: em fundo de cortiça, um pássaro amarelo a conduzir uma carroça, macaco anão a subir carroça cheia de ovelhas gigantes, e, avulso, animais indistinguíveis a olho nu. Além dos burros, inúmeros e de tamanhos diversos.

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