Entrevista | Rui Vieira Nery, musicólogo 

É, desde 2012, o director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas. Rui Vieira Nery tem estado no território no âmbito do 12º. Congresso de Lusitanistas e acredita que a cultura, com o tempo, pode ter o lugar que merece nas prioridades políticas portuguesas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] seu interesse pela música não é de estranhar, dado o seu contexto familiar, mas acabou por se formar, inicialmente, em História. Porquê?Pois, sou filho de um grande guitarrista de fado, um dos melhores do seu tempo, o Raul Nery, e, como tal, cresci a ouvir fado em minha casa. A minha mãe era uma melómana apaixonada por música clássica. De uma maneira ou de outra, a música fez sempre parte, desde criança. Ao mesmo tempo, interessei-me sempre por história e, a par da minha aprendizagem como pianista, que foi como comecei, sempre me interessei por pensar a música numa perspectiva histórica. Quando fui fazer o curso de História, acabei por perceber que podia ser historiador sem deixar a música. Foi por isso que escolhi a musicologia histórica e acabei por fazer o doutoramento em Musicologia na Universidade do Texas. Deixei de tocar, deixei de ser intérprete, mas continuei sempre ligado ao universo da música, embora numa perspectiva mais historiográfica.

Não tem saudades de tocar?
Tenho muitas. Mas era muito exigente comigo e não teria gostado de continuar a tocar se não conseguisse chegar a um nível que considerasse satisfatório e, para o conseguir, teria de me dedicar inteiramente à prática instrumental, que não poderia acumular com o meu trabalho de musicólogo. Tive de fazer uma opção e escolhi aquilo que achei que poderia fazer melhor. Mas custa-me muito e sinto muito a falta de fazer música.

Uma das suas obras tem que ver com o encontro de culturas no mundo, “O Vilancico Português do Século XVII: Um fenómeno Intercultural”. Esta multiculturalidade de que hoje em dia tanto se fala já vem de há muito.
Sim. Uma coisa que é característica do processo de globalização em que as chamadas Descobertas portuguesas se inserem é o encontro de culturas. Portugal levou consigo uma matriz cultural europeia e depois encontrou, nos vários lugares a que chegou, culturas vivas e ricas. Ao contrário de outros países que estiveram em expansão colonial nesse período, Portugal incorporou muitas das componentes dessas culturas que foi encontrando na sua própria cultura. Costumo dizer que somos uma cultura eminentemente mestiça e que essa é uma das características mais individuais da cultura portuguesa. Essa capacidade de experimentar outras canções, outras danças, outros temperos e outros namoros. Daí nascem muitas manifestações culturais e artísticas que são o resultado desse diálogo intercultural. Isto acontece logo a partir do séc. XVI. O estudo a que se refere é sobre o vilancico religioso desta altura em que temos cantigas em português, espanhol e em crioulo, cantadas na igreja, mas compostas por compositores portugueses de formação, digamos, “clássica”, que incorporam ritmos, melodias e danças populares de África e do Brasil. Temos também um exemplo mais acabado e mais moderno que é o próprio fado. Começa por ser uma dança cantada afro-brasileira, depois é apropriado pelos portugueses e transformado num fenómeno puramente nacional.

O fado é “nosso”?
Claro que é nosso. As primeiras manifestações que encontramos descritas e que tratam do fado são do Brasil, do início do séc. XIX. As primeiras manifestações da prática documentada em Portugal são já da década de 1820/30 e tudo indica que esta dança cantada, como muitas outras que foram chegando a Portugal ao longo dos séculos XVII e XVIII, foi apropriada pela cultura popular de Lisboa e foi transformada localmente. Costumo dizer que se um brasileiro tivesse chegado a Portugal em 1850 e visse cantar e dançar o fado em Lisboa perguntaria: ‘Mas o que é que eles estão a cantar e a dançar?’ Ou seja, Portugal apropria-se deste fado e fez dele uma manifestação puramente portuguesa.

Integra este Congresso de Lusitanistas dedicado à língua portuguesa e à cultura de língua portuguesa e que, cada vez mais, se alarga a várias expressões.
Penso que a Associação Internacional de Lusitanistas (AIL) tem tido uma preocupação em alargar o seu âmbito e passar do estudo da linguística e dos estudos literários em português para um estudo das várias culturas de expressão portuguesa. A língua não existe no vácuo, mas sim como um veículo de comunicação e de cultura. A língua é a comunicação do dia-a-dia, mas também é a poesia, a prosa, o cinema, o teatro e, de certa maneira, marca o nosso olhar sobre o mundo. As artes plásticas feitas por uma comunidade que fala português estão marcadas por um olhar que também tem a influência da língua e das suas estruturas. Como tal, faz sentido que não estudemos apenas a comunicação oral e escrita e que se veja, cada vez mais, o português como um veículo de culturas. Uma das coisas mais interessantes no caso do português é, precisamente, a riqueza e a variedade dessas muitas culturas a que serve de base. O português transformou-se num grande mosaico de expressões culturais diferentes, umas vezes concordantes, outras vezes em conflito, mas todas elas enraizadas na mesma língua. A AIL e os seus congressos seguem essa tendência.

Estamos no final do encontro. Qual o balanço que faz?
É um balanço muito positivo. Em primeiro lugar, pelo próprio facto de termos vindo para Macau. O último congresso foi em Cabo Verde e era muito importante que a AIL fizesse um congresso agora na Ásia, porque isso é a universalidade da própria língua portuguesa e da vitalidade destas comunidades que falam português. Por outro lado, e independentemente do lugar em que o congresso se faz, o nível científico é muito elevado. Estamos perante investigadores de múltiplas nacionalidades com um alto nível de pesquisa, de reflexão científica e de produção intelectual, e estamos aqui, a partir da língua portuguesa, a discutir questões de grande actualidade, podemos mesmo dizer questões de ponta, no debate científico internacional.

Pode dar alguns exemplos dessas questões de ponta?
A questão da própria diversidade cultural, do diálogo intercultural, da cultura como um veículo de inclusão ou de exclusão social. Tudo isto são questões muito importantes. A questão da ligação entre cultura erudita e cultura popular. São aspectos que estão na agenda dos estudos culturais em todo o mundo, e que nós aqui estivemos a discutir a partir da língua portuguesa e das culturas de expressão portuguesa.

Como é que vê o valor da língua portuguesa para a China?
É um valor óbvio. A China tem vindo a emergir como um grande parceiro geopolítico, cultural e económico à escala planetária. É muito importante estreitar, cada vez mais, as relações entre a cultura ocidental e a cultura chinesa porque somos parceiros naturais, digamos que numa nova ordem mundial que seja sustentável, justa e equilibrada. A aposta que a China faz no desenvolvimento do estudo da língua portuguesa é muito importante. O Governo Central definiu como prioridade importante o estudo e a promoção do português, e Macau, dentro dessa perspectiva, tem um papel de plataforma fundamental. O território é, naturalmente, um espaço de articulação. Macau tem um conjunto de instituições de ensino superior de grande qualidade e o Instituto Politécnico, em particular, tem feito um trabalho extraordinário. Estamos no bom caminho. A língua e o seu ensino podem ajudar-nos a descobrir as culturas de outras partes e de outras áreas. Para a semana vou estar no Congresso Mundial das Humanidades em Liége, na Bélgica, e é presidido por um investigador chinês. Este fenómeno está cada vez mais a suceder.

Já há uma representatividade da investigação chinesa?
A investigação chinesa é gigantesca e só por ignorância é que tem havido esta espécie de separação artificial entre o mundo académico europeu e norte-americano, por um lado, e o mundo académico chinês. Só temos a ganhar, de um lado e do outro, com a troca de experiências e de sabedorias. Temos um futuro muito entusiasmante nesta descoberta mútua e penso que o português pode ser um dos veículos nessa comunicação. Temos um espaço de língua comum que junta estas valências e que faz a ponte com esta realidade tão importante como é a realidade chinesa, o que acho muitíssimo positivo.

Estamos perante um tempo áureo da língua portuguesa?
Estamos a atravessar um período difícil para o planeta. Difícil em termos da paz mundial, em termos da justiça social, da sustentabilidade ecológica. Mas dentro desse quadro, que tem muitos elementos preocupantes, a entrada clara da China nas inter-relações à escala global é um factor muito positivo para a paz e para o desenvolvimento. Neste sentido, há perspectivas muito entusiasmantes de futuro, se todas as partes se souberem relacionar e encontrar caminhos partilhados.

Está neste congresso a representar a Fundação Calouste Gulbenkian, um nome maior na cultura em Portugal. Como é que está a cultura portuguesa?
Tem aspectos muito positivos, sendo que o principal é a grande quantidade de jovens agentes culturais que foram formados nas últimas duas, três décadas. Parece um lugar-comum, mas temos possivelmente a geração com maior número de profissionais da cultura com formação avançada. Naturalmente, aumenta a massa crítica e aumenta também o topo de gama dessa massa crítica. Temos, como nunca tivemos, um grande número de artistas, de escritores, de músicos, de investigadores nas áreas culturais. Este é o lado positivo. O lado negativo é o facto de a sociedade portuguesa ter dificuldade em encontrar formas de acolher essas novas gerações de profissionais da cultura e de lhes dar oportunidades de aplicarem a formação especializada. Acredito que, pouco a pouco, vamos tendo mais consciência da importância que este sector tem para o desenvolvimento global do país. Não é um luxo, não é um objecto decorativo para o qual se olha depois de se tratarem das coisas “importantes”. É parte das coisas importantes. É um factor de desenvolvimento essencial. Diria que, em termos das políticas públicas para a cultura, ainda há muito que fazer. Precisamos de mais orquestras, de mais teatros, de mais apoios para o cinema, de mais galerias de exposição, de mais oferta cultural à população em geral. É disso que estamos a falar: oferecer o acesso à cultura aos cidadãos, o que é uma obrigação constitucional. Tudo isso existe, penso, numa escala muito pequena em relação àquilo que seria o potencial do país. Hoje em dia fala-se muito da marca Portugal. É reconhecida internacionalmente em grande parte pelo impacto da cultura. Pelo cinema que ganha prémios em todos os festivais, pela música que faz um enorme sucesso em todo o circuito da world music, pelos escritores portugueses já traduzidos em muitas línguas, pelos sapatos que têm um design original e criativo. Já são efeitos da transferência da área artística para a área económica. Estamos a falar de factores de desenvolvimento essenciais para o país e que precisam de maior investimento na esfera cultural para depois terem esse impacto reprodutor. Mas sou um optimista por natureza e acredito que os próprios cidadãos irão ter, cada vez mais, noção desta necessidade de cultura e irão passando isso para as esferas de decisão política.

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