Entrevista | Carlos Ascenso André, director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM

 

Quem a viu, quem a vê. A língua portuguesa tem hoje uma importância em Macau que não tinha quando Carlos Ascenso André chegou ao território. Há quatro anos, a convicção dos decisores políticos não era um acto contínuo e os vários agentes do ensino do português viviam de costas voltadas. A realidade mudou, mesmo que não seja possível traduzi-la em números, diz o director do centro pedagógico do IPM, que traz por estes dias quase centena e meia de conferencistas para o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a primeira vez que se realiza no território o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Qual é o significado para Macau?

Tem desde logo um significado político, porque representa um reconhecimento do papel de Macau por parte da comunidade académica mais prestigiada do mundo no tocante aos estudos de língua portuguesa, e de literaturas e culturas de língua portuguesa. Claro que não foi por isso que Macau foi escolhido. Macau foi escolhido porque apresentou a candidatura. Fui ao XI Congresso em Cabo Verde, no Mindelo, apresentei e defendi a candidatura, e pareceu-lhes que as condições que Macau oferecia eram boas. Mas, em boa verdade, os decisores – os órgãos executivos da associação –estavam com a candidatura de Macau. Na mente deles existia claramente esta percepção da importância de Macau. Houve aqui um momento chave, quando há três anos convidei Hélder Macedo, que é o presidente honorário da associação, a vir fazer uma conferência a Macau. Ele apercebeu-se do potencial e do papel do território no que toca à língua portuguesa. E foi aí que ele teve a ideia – porque, em boa verdade, esta ideia acabou por ser dele. Estávamos um dia a jantar e ele desafiou-me a organizar aqui o congresso. Já tinha deixado a associação há uns anos e disse-lhe que ia pensar nisso, mas como o levei, umas horas depois, a cumprimentar o presidente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), ele voltou a falar no assunto. A partir daí, foi uma bola de neve, começou a crescer e deu este resultado. Mas penso que a primeira grande importância é essa: reconhecer o papel de Macau.

 A segunda grande importância será chamar a Macau e ao Congresso da AIL académicos chineses, algo inédito neste tipo de iniciativas.

É fazer, de facto, este cruzamento, porque é a primeira vez que acontece no Oriente, mas também é a primeira vez que professores universitários da China participam nos congressos internacionais de Lusitanistas. Não posso falar do passado porque não conheço toda a história de Macau do ponto de vista académico, mas também devo dizer que será provavelmente um dos maiores encontros de carácter científico ligados à língua portuguesa que alguma vez aconteceram no território. E isto é verdadeiramente significativo.

 Para quem está de fora deste tipo de encontros, o que é que se discute efectivamente? Qual é o verdadeiro sumo que se extrai daqui?

Estamos a falar de Humanidades em geral. Como dizia um dia Eduardo Prado Coelho, a utilidade das Humanidades é não terem utilidade nenhuma. Escreveu isso num ensaio e nunca mais me esqueci desta frase porque achei-a muito significativa. O que estas pessoas vêm fazer é trazer resultados das suas investigações. Estes encontros são verdadeiramente produtivos. Ninguém apresenta aqui uma comunicação sem que o resumo tenha sido previamente submetido a uma avaliação cega por pares. Para que alguém apresente uma comunicação aqui, ela teve de ser validada. Normalmente são o resultado de investigações em áreas que dizem respeito à língua portuguesa ou aos estudos relacionados com a língua portuguesa. Há sobre cinema, literatura, a conferência de abertura foi sobre cultura, por parte de Elias Torres Feijó, que é um dos grandes professores de assuntos portugueses em Espanha. Há sobre linguística, naturalmente, e depois há várias sobre questões sociais, porque isto mexe com todos os assuntos que tenham quer ver com a língua portuguesa, ou literaturas e culturas dos países de língua portuguesa. E nesta coisa das culturas dos países de língua portuguesa, cabe o cinema, a sociedade, a política, a história recente… Curiosamente, por ser em Macau, há algumas comunicações que têm que ver com este entrecruzar do Ocidente e do Oriente, ou seja, as relações entre o Ocidente e o Oriente, e o papel de Macau nessas relações. Estamos a falar de um total de 48 sessões paralelas. Como cada uma tem, pelo menos, três comunicações, estamos a falar de muitas comunicações ao mesmo tempo. As pessoas distribuem-se por salas e vão ouvir as comunicações, e vão discuti-las. Isto é um congresso científico.

 Todas estas comunicações serão fixadas mais tarde?

Em princípio serão publicadas, não num volume de actas. A associação já deixou, há muitos anos, de adoptar o princípio da publicação do volume de actas, porque é muito caro e depois não tem saída, não interessa a ninguém. É preferível fazer edições digitais e separadas por temas. Todas estas comunicações serão publicadas ainda este ano ou no próximo, mas em volumes temáticos. Sou dos fundadores da associação. Lembro-me que o primeiro volume de actas que publiquei, depois do primeiro congresso em 1984. As provas tipográficas foram todas corrigidas por mim. Estamos a falar de 500 ou 600 páginas de livro com temas que vão desde a história medieval, passando pela história das navegações, literatura brasileira, literatura galega… Depois ninguém quer aquele livro porque tem duas coisas que lhe interessam, mas tem 80 que não lhe interessam nada. A melhor solução, normalmente, são os volumes temáticos.

Está cá há quatro anos. A afirmação do papel da língua portuguesa deu o salto de que estava à espera?

Deu. Há grandes avanços. Podem não se medir em números, mas não estou muito preocupado com a estatística. Não sou daqueles que está a olhar para os números porque acho que o trabalho que se faz neste domínio só se sente daqui a cinco ou dez anos. Não é possível saber, no imediato, se a mercadoria foi vendida. Agora, vejo que é cada vez maior o empenhamento de quem tem nas mãos a decisão política em relação às questões do português. É particularmente visível que, quem tem de decidir, tem tomado posições muito claras em relação ao papel que Macau tem a desempenhar no que diz respeito ao português. Refiro-me no caso concreto a Macau, a quem exerce lugares de decisão em Macau – desde o Executivo, nomeadamente o secretário que tem esta responsabilidade, Alexis Tam, aos vários órgãos da Administração, nos diversos patamares onde isto tem de ser decidido – e refiro-me ao Governo Central. Não há dúvida de que aquilo a que assisti nos últimos quatro anos já não é falar disto de vez em quando, é uma insistência cada vez mais clara e nítida nesta missão de Macau no que toca ao diálogo com os países de língua portuguesa. Claro que tem que ver muito com as economias emergentes. Tem que ver com a crença que existe – e do meu ponto de vista é fundamentada – do crescimento de Angola, Moçambique e Brasil. Hão-de sair desta situação em que se encontram e quem souber estar a ocupar as posições agora, estará na grelha de partida. A China percebeu claramente isso, e percebeu que Macau tem esta herança e esta capacidade de fazer que provavelmente mais ninguém tem. Há uma grande diferença, por exemplo, entre Macau e a Índia e Goa. Dizem que, no próximo ano, vai haver um grande congresso de lusofonia ou de língua portuguesa em Goa. A grande diferença entre o que estamos a fazer agora, desde ontem, e aquilo que vai acontecer em Goa é que aqui isto é consequente. Há empenhamento político, e quem manda aqui põe meios e recursos ao serviço das conclusões que resultarem deste tipo de encontros. O que se faz em Goa é um fenómeno político que se esgota em si próprio. Passado o tempo do congresso, não vai acontecer nada.

Nota-se também uma diferença entre quem tem a responsabilidade do ensino da língua portuguesa em Macau, que passa por uma união que não existia, até com a criação da Associação de Estudos de Língua Portuguesa da Ásia.

Passa pela associação e por pôr as pessoas a conversar. Este ano aconteceu uma coisa muito interessante e, não sendo particularmente relevante do ponto de vista científico, teve esse significado. Houve aqui um congresso sobre literatura e filosofia, uma iniciativa que veio de fora, e foi-nos perguntado se estávamos disponíveis para a acolher. A iniciativa vinha de Portugal, a pergunta era feita ao IPM, também tinha sido feita à Universidade de Macau (UM) e à Universidade de São José (USJ). Enquanto andávamos nisto, tomei a decisão de contactar as minhas colegas, tanto na UM, como na USJ, e perguntar-lhes por que não discutíamos isto em conjunto. E, de facto, discutimos e organizámos em conjunto. Embora a comunicação social tenha dado notícia, passou mais ou menos despercebido o facto de que as pessoas da UM fizeram as suas comunicações no IPM, as pessoas do IPM fizeram na UM, as pessoas da USJ fizeram num lado ou noutro. Cruzámos os intervenientes. Isto nunca tinha acontecido em Macau. As instituições eram quintas que funcionavam em circuito fechado e isto nunca tinha acontecido em Macau. Aquele programa foi concebido numa reunião entre mim, Inocência Mata e Maria Antónia Espadinha. Sentámo-nos à volta da mesa, fizemos um programa e decidimos, ao fazê-lo, que tinha de ser assim. As pessoas não iam falar na sua própria casa, tinham de falar na casa do vizinho. Este cruzamento é vantajoso. Precisamos de pôr as instituições de Macau a cooperar. No IPM, assinámos um protocolo com o Camões, há uns meses. Mas esse protocolo abrange o Instituto Português do Oriente (IPOR). A relação que existia muitas vezes entre instituições e o IPOR era uma espécie de concorrência que não faz qualquer sentido, porque o objectivo e a acção do IPOR são fantásticos, mas não são os mesmos das instituições de ensino superior. Nós trabalhamos no ensino superior e o IPOR não. Há aí uma fronteira clara. Só ganhamos todos em cooperar uns com os outros. O facto de fazer um protocolo e abranger o IPOR não quer dizer que isto já esteja a dar resultado. Mas não tenho pressa, vamos lá chegar. A interacção tem de existir. A associação vai ser isso. Ainda só está no papel, já foi feita a escritura. Tem de passar o Verão para nós – eu, João Laurentino Neves e Fernanda Costa – passarmos a pasta a órgãos eleitos. E não somos nós. Tem de haver pessoas que peguem na associação. Mas passamos a ter uma associação que federa toda a Ásia. E isto é algo de novo em Macau, é um espírito novo. Tem de fazer o seu caminho, não tenhamos pressa, mas é um espírito novo.

Como é que foi este ano lectivo no Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa?

Foi um ano muito produtivo. Multiplicámos por dois o número de acções no Interior da China. Fizemos muitas mais acções do que fazíamos – também temos mais docentes e mais recursos. Quanto ao nosso número de publicações, chegaremos ao final do ano com dez livros publicados. Ganhámos o peso da responsabilidade do ponto de vista das publicações quando um livro que publicámos no ano passado, “O Delta Literário de Macau”, de José Carlos Seabra Pereira, ganhou o mais prestigiado prémio de ensaio em Portugal, o Prémio Eduardo Prado Coelho da Associação Portuguesa de Escritores. É um livro nosso, temos de assumir isso. O livro é da autoria de José Carlos Seabra Pereira, é um livro nosso, que foi escrito porque o convidei a estar em Macau durante um ano. Disse-lhe que tinha de dar aulas a apenas uma ou duas turmas, uma coisinha de nada, mas que tinha de escrever um livro sobre este assunto. E ele aceitou o repto. Temos uma fortíssima responsabilidade naquilo. Ganhar um prémio é, para nós, muito significativo. Entretanto, aquilo que ganhámos com esta consciência foi de que se o Interior da China precisa de materiais, temos de produzi-los. Já começou a série de produção e daqui até ao final do ano civil vão sair mais seis ou sete. Um saiu agora, sobre o ensino de fonética com canções. Utilizamos canções portuguesas para ensinar fonética, uma metodologia nova. É bom que Macau tenha consciência de que há coisas pioneiras que se vão fazendo aqui.

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