Os objectos estranhos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou um apaixonado por ficção científica. É provavelmente o género literário que leio há mais tempo e foi através da ficção científica que me iniciei na leitura. A minha primeira ida ao cinema, ainda em França, foi para ver o ET. Sou um leitor ávido de curiosidades e notícias da física. Quando foi anunciada a descoberta do bosão de Higgs, em Julho de 2012, festejei como se o Benfica tivesse ganhado um campeonato. Para além de geek, sou um nerd. Um mal nunca vem só, dizia-se acertadamente lá em casa.

A minha paixão pela física tem a mesma natureza da minha paixão pela filosofia ou pela literatura; as três áreas são vastos laboratórios onde cada um pode construir coisas que não existem no mundo ou mesmo mundos inteiramente diversos. Liliput nasce da imaginação de Swift. A alegoria da caverna é a imagem que Platão usa para ilustrar as limitações do ponto de vista. O Matrix, dos irmãos – entretanto tornados irmãs – Wachowski mostra-nos o que poderia ser a experiência de despertar do mundo enquanto sonho. E tudo isto funciona porque apenas uma regra (isto é, um sentido cuja regularidade torna o mundo previsível e pelo qual nos orientamos) é quebrada. Tudo o resto decorre de acordo com regras lógicas do pensamento pela qual a coerência do Gedankenexperiment se mantém.

Este território infindo de possibilidades permite-nos ter acesso – mesmo e ainda que mediado – a uma multiplicidade de universos alternativos. As fronteiras do território coincidem com as fronteiras da imaginação. Se é possível, é. Podemos simular a extinção humana, a vida extraterrestre, podemos imaginar uma realidade alternativa na qual existem dragões e magos ou uma inteligência artificial cujo propósito se tenha corrompido e nos tente destruir, podemos entrar dentro de um buraco negro. E podemos fazer isto em completa segurança. Ao contrário da realidade e da sua brutal inflexibilidade física, como diz o meu amigo Luís Gouveia Monteiro, a imaginação é tão generosa quanto segura. É a praia infinita onde nunca deixamos de ser crianças. Só não podemos lá viver. No continente da imaginação nunca deixamos de ser turistas.

Os melhores livros e filmes de ficção científica que conheço não se esgotam no plano estético ou no prazer da leitura. Fazem perguntas sobre a natureza fundamental do humano, colocando-o para isso em situações impossíveis ou improváveis. Criam labirintos, colocam as personagens dentro do puzzle, observam e relatam. O Alien do Ridley Scott alimentando a nossa neurose claustrofóbica com o medo supremo de sermos apenas pasto para criaturas infinitamente mais fortes e ágeis, para o superpredador que no planeta Terra, somos nós, mas cujo arquétipo inconsciente não deixou, por isso, de existir. O delírio genial que é o Donnie Darko na sua ambiguidade de Cassandra, pondo em relevo a possibilidade de sermos o único sujeito com um acesso adequado à realidade e ao futuro mas estarmos condenados à incompreensão geral. Os exemplos abundam e o séc. XXI tem sido generoso no que concerne a ficção científica no cinema.

Escrevo esta crónica logo após ter revisto o Sunshine, do Danny Boyle. É um filme tão intenso como inteligente na gestão que faz do espaço diminuto onde as personagens, com a pressão de terem de salvar o planeta de uma era glacial e da extinção da vida humana devido ao sol estar a morrer, vão mostrando o que a ficção científica tem de mais generoso: a natureza humana, a sua grandeza e as suas abissais falhas, a nossa pequenez microscópia relativamente ao universo que habitamos, a possibilidade aterradora de seremos apenas um intervalo de que não haverá qualquer rasto ou notícia do seu acontecimento, um intervalo entre eternidades de inabitáveis, um intervalo na forma de pó. “Stardust”, como diz um dos protagonistas. Desta feita, estou contente pelo facto de ser apenas turista.

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