Primeiro olhar de Pessanha sobre Macau

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o riquexó, puxado por um cule que agarrava os varais para levantar a cadeira pelo eixo das rodas, Camilo Pessanha prepara-se agora para partir da Rua do Visconde de Paço d’ Arcos, assim chamada desde 15 de Novembro de 1882, quando até então era designada apenas por Rua Marginal do Porto Interior. A vontade era de continuar para Sul, pois os aterros, desde as Portas do Cerco até ao Largo do Pagode da Barra, foram feitos entre 1867 e 1869, quando a uma parte dessa marginal rua foi dado o nome de Avenida António Sérgio.

Um dos lados da via tinha uma berma num dos ramos do Rio Oeste e na outra edifícios de dois andares, cujo rés-do-chão se encontrava recuado. Eram, normalmente lojas ou armazéns, quase todos relacionados com os negócios marítimos, ficando o andar superior destinado a residência. Em túnel, esse passeio permite aos transeuntes resguardarem-se da chuva e aos comerciantes exporem fora das lojas os produtos. Tal arquitectura, dos finais do século XIX, é conhecida por Kei Lau, sendo especial da área de Lingnan, que compreende as províncias de Fujian, Guangdong, Guangxi e Hainão, no Sudeste da China.

A Pessanha não faltaria a vontade de seguir pela tão apelativa estrada marginal, onde desembarcara vindo de Hong Kong, encontrando-se próximo o cais do barco de Cantão, seguido por um outro, onde se descarregavam as mercadorias provenientes da província de Guangdong. Terá imaginado essa idílica viagem, quando está ainda na Rua do Visconde de Paço d’ Arcos, que em 1882 tinha 26 prédios, começava na Rua do Guimarães e acabava na Rua do Miguel Ayres. Já o Cadastro de 1906 refere esta rua, conhecida em chinês por Pa-su-ta-ni-ku-kae, na freguesia de Santo António, com 34 prédios, a começar e acabar na Rua do Guimarães, onde ficavam os cais dos vapores Mao-cheong, do Ying-king, do Fat-on, do Ung-cheong, do Tai-on e do Hong-sam. Mental viagem a circundar pela marginal até à Praia Grande, só em 1910 poderá realizar.

Plano para mais tarde

O percurso que Pessanha estava prestes a começar a fazer, já a 1 de Novembro de 1890 estava descrito no jornal O Macaense:

“Quem desembarca do vapor de Hong Kong, no porto interior, e quer vir à Praia Grande, tem de atravessar um dédalo de ruas estreitas e imundas, orladas por casas de paredes escuras e tristes. Há principalmente uma travessa muito estreita, junto à Rua de Felicidade por onde têm de passar todos os que quiserem transitar em jenrickshas. É tão estreita que um homem de braços abertos não pode passar por ela. É ela a Travessa do Tintureiro (Tai Pang Hong), ou Travessa do Falcão, com menos de cem metros que, começando no Largo do Senado, termina na Rua dos Mercadores.

Houve em tempos um projecto bastante grande de fazer uma larga avenida, que partindo do Largo de Caldeira no porto interior, viesse acabar na Praia Grande, passando pela frente do edifício do Leal Senado. Para esse fim seria preciso expropriar um bom número de casas chinesas, e uma parte da casa que é actualmente o Hotel Hing-kee, e calculava-se que seriam necessários $30 000. Não pedimos agora tão grandiosa obra. Por enquanto talvez bastaria modificar a Rua de Felicidade, alterando-a gradualmente desde o seu começo na Rua Marginal (Rua do Visconde de Paço d’ Arcos), para torná-la transitável para jinrickshas, que agora não podem subir a ladeira que a vem ligar com a Rua dos Cules. Os prédios da Rua de Felicidade pertencem a uma sociedade de negociantes abastados, que são bastante condescendentes. Não será difícil persuadi-los a converter, as que hoje servem de lupanares, em lojas mais asseadas e com frontarias mais alegres, com o que eles virão finalmente a lucrar. Essa transformação não poderá deixar de ser lentamente feita, mas se o governo melhorar aquela rua de modo que a torne mais frequentada, os proprietários por seu próprio interesse irão transformando os prédios, enxotando dai os lupanares.”

O capitalista chinês Vong Loc formara uma Companhia, a 绍昌堂 (Shao Chang Tang), que adquiriu a Fábrica de Processamento de Chá Pereira, com a frente para a Rua da Alfândega e traseiras situadas junto à água, e comprou as antigas casas em redor do Beco de Matapau e por aterro, no início dos anos 60 do século XIX foi construída a Rua Nova da Felicidade Abundante, em chinês Fok Long San Kai.

Nessa nova zona do Porto Interior, que compreendia a Rua da Felicidade, Beco, Travessa e Pátio da Felicidade, Pátio do Aterro, Rua da Caldeira, Travesso do Bazar Novo, Rua do Bocage, Travessa das Virtudes, Travessa do Auto Novo, foram construídas mais ou menos 160 lojas. Em 1864, a Companhia desfez-se devido aos sócios estarem desanimados, pois as lojas continuavam vazias e Vong Loc comprou-as todas, mudando o nome à Companhia para 集成堂 (Ji Cheng Tang), tornando-se então o maior proprietário de Macau.

Trinta anos depois, à estreita Rua da Felicidade, de casas com portas de espaldar e tijolos cinzentos, virá Camilo Pessanha com ela iluminada pelos candeeiros vermelhos a indicar os coulaus (restaurantes) para apreciar a música das pei pa tchai, mulheres assim chamadas por tocarem pei pa (pipa), um instrumento musical de quatro cordas e cantarem pela noite dentro. Vestindo um qipao (túnica), eram preparadas para agradar aos comensais.

Segundo o que o Engenheiro Director das Obras Públicas Augusto Abreu Nunes descreve a 11 de Fevereiro de 1903:

“As ruas mais importantes que cortam o Bazar e estabelecem a ligação entre ele, a rua Marginal e o centro da cidade, na direcção Leste/Oeste são: a Rua da Felicidade e a Rua das Estalagens, duas ruas estreitas, tortuosas, tendo em alguns pontos a máxima largura de 6,5 metros! Estas ruas são ligadas transversalmente por outras, em piores condições ainda: a Rua dos Mercadores, a do Mastro, a do Aterro Novo, etc., chegando nestas travessas a haver largura de 3 metros e não sendo a maior nunca superior a 7 metros. Resulta deste estado do Bazar, uma aglomeração enorme de casas de negócio, e portanto de gente e carros pelas ruas, que se atropelam constantemente, dificultando o trânsito e o comércio. A estes inconvenientes acresce, como consequência, que as condições higiénicas daquele recanto são deploráveis, isto é: uma falta de ar e luz em todas as habitações, becos e ruas, e um fétido insuportável por toda a parte”.

Para chegar ao Largo do Senado

A Rua do Visconde Passos d’ Arcos tinha à sua frente a oblíqua Rua do Corte Real (Co-ti-li-ha-kai), que termina junto à Rua Nova do Comércio no cruzamento com a Rua do Guimarães. Fosse essa a opção, logo na Rua do Guimarães começa a Rua do Matapau, que permite atingir a Rua dos Mercadores e daí seguir depois pela Travessa dos Tintureiros até à Praça do Senado, cruzamento com a Rua da Cadeia. Se escolhesse prosseguir um pouco para Sul, pela Rua do Visconde Passos d’ Arcos, até onde acaba a Rua do Guimarães, poderia entrando pela Rua da Caldeira, pequeno porto (caldeira) aterrado em 1875, prosseguir pela Rua da Felicidade e cortando para a esquerda, a Rua do Aterro Novo, onde virando para a direita, encontra a Rua do Matapau (a dos marceneiros), para chegar à Rua dos Mercadores.

Fora de hipótese era escolher ir para Norte, pois o percurso era bem mais longo e ficava fora de mão. Mas se tal ocorresse, encontrava a Rua da Madeira, que depois de cruzar com a Rua do Guimarães e com a Rua Nova de El-Rei (actual 5 de Outubro), um pouco mais adiante apareceria as travessas da Cordoaria e do Pagode, seguindo até à Rua do Mastro. Também para aí chegar havia, antes do Largo de Matapau, a Rua do Pagode, que seguia paralela à Rua da Madeira. Já da Rua do Mastro para chegar à Rua dos Mercadores havia para quem circulava pela Rua do Pagode, desviando um pouco para a direita, a Travessa das Portas, sendo no entanto muito estreita e por isso, só a pé tinha passagem. Duas outras estreitíssimas travessas faziam a ligação da Rua do Mastro para a Rua dos Mercadores, a dos Becos e a Travessa dos Mercadores.

Outro percurso era continuar ainda mais para Norte pela Rua do Guimarães, seguir até ao Largo do Matapau (Largo do Pagode do Bazar onde se encontra o Templo de Hóng Kông e começa a Rua Nova de El-Rei, actual Cinco de Outubro) e daí, pela relativamente larga para a época Rua das Estalagens, seguir até à dos Mercadores. A ligar a Rua dos Mercadores com o Largo do Senado, existia a Rua da Palha, que dá ao Largo de S. Domingos, onde se situa o Quartel com o mesmo nome, instalado no antigo Convento. Contíguo a esse largo está o Largo do Senado.

De referir, como o Padre Manuel Teixeira nota, que o Bairro de S. Domingos iria em breve ser totalmente remodelado pelo Director das Obras Públicas eng. Abreu Nunes. Na altura, ainda se estava à espera do projecto para o Mercado de S. Domingos, devorado por um incêndio a 15 de Novembro de 1893 e para o qual só em 19 de Julho de 1904 foi aberto concurso para a obra de construção. A venda dos produtos era desde então feita na Travessa do Soriano, que estava transformada num lugar imundo, um depósito de detritos orgânicos, um verdadeiro foco de infecção.

Do Senado para a Praia Grande

A viagem, feita em corrida num passo miúdo e cadenciado, avança por entre outros carros, sendo usada a voz como buzina. Camilo Pessanha, ao cruzar pelo triangulado e aprazível Largo do Senado, já não verá o “grandioso, soberbo e extraordinário urinol dos cupidos, que com tanta arte e perfeição aí existira. Era uma obra pitoresca, admiravelmente arquitectada”, que daí tinha sido acabada de retirar, como refere um jornal de 31 de Março de 1894.

Já toda a zona ocupada pelos edifícios da Santa Casa da Misericórdia (Igreja Visitação de Nossa Senhora, Cartório e Casa dos Expostos, que em 1883 estavam em risco de ruína) no Largo do Senado, em 1888 tinha sido remodelada. Foram abertas ruas, construído um novo Cartório e renovadas as casas de habitação com rés-do-chão e primeiro andar aí existentes, onde em 1893 e durante cerca de um ano no n.º 14 do Largo do Senado teve Sun Yat-sen o seu consultório.

Do Largo do Senado havia duas vias para chegar ao Hotel Hing Kee, na Praia Grande. Entrepunha-se no caminho um pequeno outeiro a partir da Travessa dos Anjos e subindo passava pelo Largo da Sé até ao início da Rua Central, de onde mais íngreme nascia um cortinado de colinas trepando para Sul, atingindo o ponto mais alto na Colina da Penha. Pertencia essa cadeia montanhosa ao corpo do Dragão da cidade.

Para atingir o Largo da Sé, vindo da Rua de S. Domingos, as travessas do Bispo e de S. Domingos e desde o Largo do Senado, através da Rua do Roquete até à Rua da Sé. Do Largo da Sé onde o Paço Episcopal e a Catedral se encontram, descendo pela Calçada de S. João entra-se na Rua da Praia Grande, onde virando para a direita, um pouco adiante estava o hotel. A Calçada de S. João era usada para enviar o peixe aos vendedores que esperavam e ansiavam por um novo Mercado de S. Domingos. A meio da Calçada S. João, à direita de quem desce e na continuação da Rua Formosa, existe o Pátio das Flores, talvez então com ligação à Travessa Nova (situada na Rua da Sé), que servia as traseiras das casas da Praia Grande.

Mas mais rápido para chegar ao hotel era pela Rua do Gonçalo subindo o outeiro até ao começo da Rua Central e nesse cruzamento, onde também vinha acabar a Rua da Sé, descer pela Calçada do Governador para a Rua da Praia Grande.

A opção foi pela Rua do Gonçalo e o riquexó, puxado pelo cule descalço, trepou aquele lanço em declive até ao começo da Rua Central, junção com a Calçada do Governador. Nesse cruzamento, uma patrulha da polícia controla os cules que puxam os jinrickshas pois, não lhes sendo permitido conduzir esses carros com passageiros na subida e descida da Rua Central, os transgressores eram multados. Assim se evitavam os repetidos e contínuos desastres que até 1893 iam ocorrendo em calçadas mais ou menos íngremes. O jornal Echo Macaense, de 29 Agosto de 1893 escrevia:

“Como se sabe, a ordem, que insensatamente havia sido dada para se vedar o trânsito pela Rua Central a indivíduos que fossem de carro puxado por um só chinês, foi afinal, em consequência sem dúvida dos repetidos clamores da imprensa local, modificada no sentido de não se permitir que subam ou desçam aquela rua, senão aos carros que conduzam mais de um adulto, sendo tirado por um cule. Sem embargo, porém, dessa modificação, bastante razoável, continuam a fazer-se ouvir queixas contra a patrulha da Rua Central, sendo raras as reuniões onde se não comente este ou aquele incidente, ocorrido na mencionada rua”.

Na descida da Calçada do Governador, Pessanha encontra de frente o Fortim de D. Pedro. O riquexó, travado pelo cule ao chegar à Praia Grande, desvia para a esquerda e quando atinge o hotel já a luz do dia esmorece. Partira de Hong Kong no vapor Heungshan às duas da tarde e anoitecia quando desce do riquexó completamente extenuado. Tem, no entanto, antes de antes de avançar para a porta do hotel, a tentação de admirar a belíssima baía com a sua graciosa curva de 1300 metros de extensão. Espreitando, não se via passagem para lá do Baluarte do Bom Parto.

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Regina Campinho
Regina Campinho
13 Nov 2017 16:34

Caro Eng. José Simões Morais, Escrevo-lhe a respeito deste artigo, que muito apreciei, porque estou a fazer um doutoramento na Universidade de Coimbra a respeito da história urbana de Macau, de finais do século XIX a inícios do século XX. Tenho especial interesse nas intervenções urbanas realizadas por iniciativa de empreiteiros chineses e macaenses, como por exemplo o aterro que refere da Rua da Felicidade. Queria pedir-lhe, se for possível, que me indicasse as suas fontes sobre este aterro, e em particular sobre o negociante chinês Vong Lok, que refere no início do seu artigo (será o mesmo que Francisco… Ler mais »