O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio (I)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma passagem da célebre crítica de Machado de Assis a Eça de Queirós, e mais particularmente a O Primo Basílio, lemos: “Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral.” Ora, é precisamente isto que Eça não dá, nem quer dar. O que Machado de Assisquero deixar bem claro que me refiro ao senhor Machado de Assis enquanto leitor e não ao escritor Machado de Assis. Não se trata aqui do escritor Machado de Assis, mas sim do leitor, da leitura que Machado de Assis fez do romance do escritor Eça de Queirós O Primo Basílio – não via, não conseguia nem ver nem aceitar, era que Eça concedesse à pessoa, na figura do personagem, tão pouco valor. Mas para Eça, é isso que é o mais importante. Para Eça, o importante é mostrar o quanto a nossa vida está longe de ser nossa; o quanto a nossa vida está longe de nos pertencer e de respondermos inteiramente sobre ela. E, neste sentido, Eça é profundamente ontológico. O humano sabe muito pouco de si, da sua condição, daquilo que lhe está acontecer, das forças que decidem o seu destino. Isto é o que Eça de Queirós – o escritor, talvez não o homem – viu muito bem. Pois se o humano é assim, porque têm os personagens de ser diferentes? O que importa a Eça não são bons ou maus efeitos literários, bons ou maus episódios, sequer moral, que parecia ser tão importante para o leitor Machado de Assis, o que importa a Eça é o humano. O humano na sua situação no mundo.

Comecemos então por apurar as estruturas do humano que ardem em O Primo Basílio, as fundamentais, de modo a entender melhor a célebre passagem de Luísa, a que Machado de Assis se refere. As estruturas a analisar são: desejo, prazer e nada.

Encetemos então, e primeiramente, a distinção entre desejo e prazer, através de uma passagem do livro, onde Leopoldina conversa com Luísa, já muito perto do fim do livro. Leopoldina era uma mulher casada, um pouco mais velha do que Luísa, 27 anos, muito bela, “o corpo mais perfeito de Lisboa”, reputada de mulher viciosa, de ter vários amantes e com quem o marido de Luísa, Jorge, proibira esta de se encontrar. Luísa tinha crescido com Leopoldina e tinha admiração por ela, pela sua beleza e, de algum modo, pela forma decidida com que vivia. E gostava muito de ouvir o que a outra lhe contava acerca dos seus amantes. Antes de avançarmos para a passagem que se pretende analisar, veja-se outros episódios com Leopoldina. O primeiro, ainda Jorge está em Lisboa, de partida, embora não esteja em casa, e Leopoldina fala-lhe de Basílio, que ele havia chegado a Lisboa. Depois, o que não deixa de ser curioso, aliás bastante curioso, já com o marido fora, quando Luísa se preparava para ir visitar Leopoldina, e estava contente por isso, seu primo, Basílio, apresenta-se pela primeira vez desde o regresso, fazendo com que ela se decida a já não visitar a amiga, mas antes a ficar em casa com o primo. Era como se o Eça fizesse com que, ao invés das conversas da Leopoldina acerca dos seus amantes, ela iniciasse também um caminho de fazer as suas próprias conversas. Mais tarde, sendo já amante do primo e num ataque de arrependimento, querendo e não querendo acabar, pensa em falar com Leopoldina acerca do assunto, escreve Eça:

Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era!

Quando Eça escreve “consultar Leopoldina”, obviamente não quer que pensemos que se trataria de uma procura de começar a trilhar o curso do arrependimento. O que ela pretendia, seguramente, com essa hipotética consulta era uma concordância fora dela com os seus desejos dentro dela. Ou seja, o que ela pretendia de Leopoldina era que esta lhe falasse dos enormes benefícios de se ter um amante e de como isso não traz mal nenhum ao mundo, pelo contrário. Luísa queria duas coisas que lhe pareciam irreconciliáveis: sossego, paz de alma, como se usa dizer, e satisfazer seu desejo no corpo do primo. Trata-se, portanto, de uma situação que todos nós aqui presentes conhecemos bem. Não necessariamente em relação a um amante, mas em relação a alguém com quem costumamos dormir e queremos ouvir de uma amiga ou de um amigo que devemos continuar a fazê-lo, contrariamente a um possível fim. Não é que Luísa não continuasse amante de Basílio, sem a hipotética consulta – como nós não deixamos de continuar a ficar com alguém, se outros não nos apoiarem nessa nossa decisão –, mas depois da consulta com Leopoldina, sempre continuaria a sua aventura mais aconchegada, isto é, não continuaria sozinha, levaria consigo para o seu amante um “não sou só eu que penso assim”. Este “não sou só eu que penso assim” é de extrema importância para quem sabe que está a cometer uma falha ou apenas suspeita disso. Que essa consulta nunca se realize, não tem aqui importância, pois o que está em causa, o que importa mostrar é como Leopoldina, na economia do texto, aparece sempre ligada a uma agressão contra a convenção social. Pensar em consultar tal pessoa, só pode significar não querer se pôr de bem com o status quo, com o que é convencional. Por outro lado, quando diz “Jesus, que infeliz que sou!” está a dizer a verdade, a verdade que atinge a natureza humana nessa situação em que Luísa se encontra, isto é, sentir dentro de si, em si mesma, dois quereres contraditórios: um a exigir dela que se comporte como seria de esperar de uma senhora da sua condição; outro a exigir dela a satisfação do desejo pelo primo. A infelicidade dela, aqui, na frase acima, resulta da sua vida estar a ser assaltada pelo desejo, à sua revelia. O desejo que sente faz com que não tenha mão nela, não tenha possibilidades de se segurar, isto é, Luísa não tem o controlo da sua vida. Esta é a sua infelicidade. Aqui, a infelicidade não é o desejo. A infelicidade são duas coisas: o desejo agindo sobre ela de modo a tomar-se senhor dela, seu dono; e ela sentir, saber que não o deve fazer devido à sua condição de mulher casada. E que diz então Leopoldina a Luísa de tão relevante para a nossa análise? Estas seguintes e extraordinárias palavras, quase no fim do livro:

Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar – ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata… Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!

E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada:

– Aborreço-me! Aborreço-me!… Oh, céus!

Ficaram um momento caladas.

Iniciamos então aqui a nossa distinção entre desejo e prazer, na economia do texto de Eça e na apresentação da situação humana. O desejo, já havíamos mostrado anteriormente, com Luísa, tem o poder de nos transformar em escravos. Luísa, através do desejo, deixa de ter poder sobre a sua própria vida – quando estamos sobre esse efeito, costumamos dizer “deixei de pensar” –, Luísa deixa de ser ela no desejo. Mas agora, com Leopoldina, dá-se uma avanço na compreensão do desejo e seus mecanismos. O desejo é auto-fágico, ele traz em si mesmo a vontade de acabar, de se comer a si próprio. O desejo devora o desejo. Depois do desejo saciado, devorado, o prazer termina. Mas o desejo traz também em si, além da vontade de se acabar, uma promessa de prazer. O desejo promete prazer. É essa promessa de prazer, esse canto da sereia, que o humano não suporta ouvir, acabando por ceder ao que o desejo quer. Desejo e prazer não são o mesmo. Desejo é uma coisa que promete outra. Desejo promete prazer. Promete e dá (pelo menos, a maioria das vezes). O prazer é a morte do desejo, é o desejo a acabar-se, o desejo a comer-se a si próprio. No fim, acaba-se tudo: o desejo e o prazer. Por isso, tantas vezes acontece dizermos a nós próprios que o melhor é cair logo naquela mulher de uma vez (ou naquele homem), para depois termos sossego; pois o desejo por saciar não nos deixa sossegados, mas uma vez saciado acabou-se, voltamos a nós; e a mais das vezes é mesmo o melhor que temos a fazer, pois a promessa de um enorme prazer anunciada no desejo acaba-se por se tornar apenas fracções dessa promessa, pequenas fracções de um prazer, que faz com que isso não volte a acontecer e, quanto a esse assunto, ficamos sossegados. Mas o desejo renasce das suas próprias cinzas através de um aliado poderoso: a memória. A memória traz até nós o desejo e a sua promessa de prazer. A memória traz até, nesse trazer, aquilo que se não passou, se for caso disso, mas principalmente a idealização do que se passou. Um update do passado, daquilo que se passou. Seja com ou sem update, a verdade é que a memória devolve-nos o desejo, instiga em nós uma vontade de repetir o prazer. É assim que o desejo se tende a multiplicar. Tende a multiplicar-se em nós numa procura vã de encontrarmos um prazer que se não acabe, um prazer que veja o fundo ao desejo. Tudo isto porque a memória não nos dá descanso e permite uma entrada livre, ao desejo, em nós. A multiplicação do desejo acabará sempre, no seu melhor, numa frase assim: “E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!” De facto, uma vez caídos na multiplicação do desejo, nenhum homem (ou mulher) nos pode salvar, só Deus. (continua)

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