Ponte em Y | Preocupações de Hong Kong não são partilhadas por Macau

A ligação entre Hong Kong-Zhuhai-Macau está quase completa, criando receios na outra região de administração especial, em particular entre os movimentos pró-democratas. Por cá, a questão é vista mais da perspectiva económica

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] assunto não é novo, mas tem muitos contornos políticos, principalmente em Hong Kong. À medida que a construção da maior ponte do mundo chega ao fim, os receios trazidos pela inevitável integração lançam gasolina na fogueira das relações já tensas entre o território e Pequim.

Com a celebração dos 20 anos da transferência de soberania de Hong Kong, e a visita de Xi Jinping ao território, as velhas preocupações do Governo colonial britânico são hoje evocadas pelas forças pró-democratas da região, que temem que o projecto da ponte ponha em causa a política “Um país, dois sistemas”.

“Dentro de 10 a 15 anos, quando estas infra-estruturas estiverem concluídas, Hong Kong será visto apenas como parte da China devido à ausência de uma fronteira clara.” As palavras são de Kwok Ka-ki, deputado pró-democrata de Hong Kong, em declarações à agência Reuters. O tribuno alarga a sua desconfiança também à ligação ferroviária com o Interior da China.

Por cá, Au Kam San considera que “a ponte não causa uma grande influência em Macau”. “Não penso que as fronteiras entre as três regiões fiquem menos visíveis”, declara. O deputado à Assembleia Legislativa (AL) não considera que a infra-estrutura coloque em causa a política “Um país, dois sistemas”.

O pró-democrata local recorda que a ponte da Baía de Shenzhen, que causou muitos protestos do outro lado do Delta, pode levantar problemas mais complicados em termos políticos. Com o arranque desse transporte público prevê-se que polícias do Interior da China possam exercer acções de fiscalização junto dos passageiros oriundos de Shenzhen em território de Hong Kong. Uma questão diferente, que foi considerada na outra região de administração especial como o aperto de controlo de Pequim.

Em Macau, Au Kam San entende que, como já existe a Ponte Flor de Lótus, com ligação à ilha de Hengqin, que não prejudicou o princípio “Um país, dois sistemas”, acrescentando que não será a nova ponte a causar erosão à política estatuída nas declarações conjuntas.

Margens históricas

A ponte é um projecto que tem sido discutido há décadas. Em 1983, o histórico empresário de Hong Kong Gordon Wu lançou a ideia para a construção da infra-estrutura. Esta seria a resposta rodoviária ao crescendo de trocas comerciais entre a antiga colónia britânica e a cidade de Shenzhen, bem antes da transferência de soberania.

Albano Martins entende os receios de integração por parte de um sector de Hong Kong mais activo politicamente, “porque os sistemas são, de facto, muito diferentes”. Porém, o economista entende que “a China irá cumprir com o acordo firmado na assinatura da Declaração Conjunta e terá de manter o segundo sistema a funcionar até se esgotarem os 50 anos”. O analista vê com naturalidade os desejos de aceleração nas forças mais agressivamente pró-Pequim, a fim que a integração se faça progressivamente.

Por exemplo, os casos de políticos pró-democratas a serem barrados nas fronteiras de Macau e Hong Kong são, na óptica de Albano Martins, “uma violação ao segundo sistema”. Ou seja, uma aproximação à forma como se faz política no Interior da China. Porém, o economista não considera que a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau possa, por si só, ser tão preponderante do ponto de vista da integração política.

O membro do Partido Comunista Chinês e director da Autoridade da Ponte, Wei Dongqing, encara o projecto como uma forma de ligação para promover a unidade, tanto física, como mental. “É uma ligação psicológica, ainda assim estamos confiantes num futuro com um mercado único, um povo único. Esse é o sonho”, disse o alto funcionário à Reuters.

É precisamente este sonho que é visto como um pesadelo para os pró-democratas de Hong Kong que encaram a construção como uma aproximação do território à China comunista.

Travessia financeira

“Acho que facilitará, em muito, o fluxo de mercadorias e serviços entre os três sítios que já têm uma enorme tendência de integração económica”, comenta Wang Jianwei, académico da Universidade de Macau, especialista em política externa chinesa.

O professor da Faculdade de Ciências Sociais olha para a situação como uma questão de inevitabilidade económica. “Macau e Hong Kong não podem passar ao lado da possibilidade de se conectarem com uma região e mercado maiores”, comenta. Wang Jianwei vê a integração como uma hipótese de desenvolvimento económico com grande potencial para a criação de emprego. Ficar de fora do projecto de construção que está em curso seria uma decisão com consequências maiores do que o preço político a pagar. Porém, o académico não acha que “o Governo Central veja a construção da ponte como uma forma de se imiscuir politicamente em Hong Kong e Macau”.

Por outro lado, Albano Martins considera que houve uma ilusão criada pela forma como a China se abriu economicamente. “Com a aproximação ao segundo sistema do ponto de vista da adesão à economia de mercado, houve quem ficasse com a ideia de que o primeiro sistema poderia ser absorvido pelo segundo”, comenta. Porém, essa situação é contrária à “própria dinâmica de manutenção do sistema de partido único”.

O economista entende as preocupações da população de Hong Kong, sobretudo das famílias que “viveram os dramas do êxodo de Xangai depois da conquista do poder pelo Partido Comunista Chinês”. Albano Martins acrescenta ainda que este será um problema que terá sempre de ser enfrentado pelos descendentes de uma “elite empreendedora de Xangai, que ajudou muito à criação do tecido económico de Hong Kong e que tem um trauma com a aproximação de Pequim”.

Reverso da moeda

No meio de tanta celeuma, o facto é que o controlo fronteiriço se mantém. Além disso, há uma realidade que parece estar a escapar aos activistas pró-democratas de Hong Kong: a ponte também vai para Zhuhai. “A aproximação entre as três cidades incrementa as comunicações e os transportes, mas também a compreensão entre as três regiões”, projecta Wang Jianwei. O professor da Universidade de Macau espera que a ponte encoraje ainda mais o incremento do turismo do Continente nas regiões administrativas especiais.

Wang Jianwei vê a infra-estrutura como a forma de implementar o ciclo de vida de um dia, em que “uma pessoa possa viver em Zhuhai, trabalhar em Hong Kong e regressar no mesmo dia”.

O académico espera ainda que a ponte contribua para “reduzir as suspeitas e mau ambiente entre as pessoas”. Como Macau e Hong Kong têm um estilo de vida e cultura diferentes do Interior da China, isso também será um “desafio para os ‘mainlanders’ que serão sujeitos a um espírito mais liberal”.

O facto é que, economicamente, ambas as regiões administrativas especiais dependem da China, a segunda maior economia mundial, como seria inevitável. Nesse aspecto, Albano Martins explica que “o cerco económico está feito”. A restante integração política é a grande questão, ainda envolta em grandes dúvidas, uma vez que os três territórios têm jurisdições e culturas políticas bem distintas. O economista não duvida de que “a integração não se vai fazer sem alguns danos colaterais para as populações”. O grau desses danos está por apurar, assim como a direcção das influências culturais num sentido bilateral. Para que o futuro se clarifique “é preciso ver o que acontece com a renovação de gerações”.

Um dos desafios é saber como a liberdade de expressão será tratada, feita a total integração política, assim como o respeito pelos direitos humanos. Mas também do lado de Pequim, até que ponto as novas gerações, com maior fluidez de movimentos e possibilidades económicas, irão encarar e construir o futuro da China.

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