Destruir a morte à custa da vida

Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética.

Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra.

Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida?

Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena.

Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica.

Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas.

O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.”

A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno.

Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.

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