Tempos e lugares

Setúbal, 10 Junho

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]emos como se estivéssemos em pleno acontecer, mas não será nunca assim. A esta distância percebo que o dia maior da Festa da Ilustração, a segunda leva de inaugurações, será marcado pelos tempos, até os contratempos, além das geografias e dos lugares. Tem-se pouca noção da quantidade de trabalho exigido, do esforço envolvido, das horas perdidas, dos milhentos acertos e vontades que precisam coincidir para que o milagre aconteça. Este ano, por inúmeras razões, foi particularmente difícil. Justifica-se, também por isso, mais a festa.

Por coincidência, o país celebra-se em dia mítico, torturando Camões e torturado pelo calor, que se abate sobre nós com desejada brutalidade. A jornada começa pelo futuro, a meio da tarde, no Convento de Jesus, onde a metade ainda em obras se abriu para acolher a «Ilustração Portuguesa». Cenário apropriado, portanto. Ano após ano, continuo surpreendido com a biodiversidade nacional: paisagens, palcos, experiências, desenvolvimentos, cores e corpos, abstrações e perspectivas, gestos e retratos, reflexões e deslumbramentos. Estranho e maravilhoso país, este.

À beira-mar, no Cais 3, está ancorada uma fatia de passado, entre 1895 e 1969: grande selecção, feita pelo Jorge [Silva], a partir da sua ímpar colecção de publicações, de anúncios ilustrados pelos melhores artistas portugueses (de Lima de Freitas a Fred Kradolfer, de Alonso a Jorge Barradas, de Cottinelli Telmo a Roberto Nobre, de Carlos Botelho a Bernardo Marques, de Maria Keil a Piló, de Luís Filipe de Abreu a Lázaro e tantos outros). O armazém contém, em altas torres, «Anúncios Classificados», essas inúmeras variantes de que é feito o horizonte mirífico do desejo de saúde e bem-estar, de beleza e prazer, de comida e bebida, de cultura e progresso. O humor está omnipresente, bem como a ideologia. Além do delirante conjunto de imagens, testemunho gritante de outros tempos. Dá gozo ver quem vê a exposição, com os seus comentários e sublinhados, com as suas gargalhadas e indignações.

A tarde finda-se virada a sul. «O Alentejo do Espanto e do Sonho» será, muito provavelmente, a maior e mais animada das (poucas) retrospectivas dedicadas a Manuel Ribeiro de Pavia (ilustração ao lado), cujo centenário do nascimento se celebra, enquanto, ao mesmo tempo, se lamentam os 50 anos passados sobre a sua morte, no mesmo exacto dia 19 de Março. Fica bem vincado o carácter onírico do trabalho de Pavia, o seu olhar sobre o feminino e a paisagem, todas as formas irmanadas em ondas e massas, momento e movimento. Uma parede inteira de capas de livros, na sua grande maioria de autores neo-realistas, abrem curiosa janela. Não se consegue escapar à tragédia e ao mito criado, com a revista Vértice a celebrar na morte o que não soube fazer em vida. Diria Eugénio de Andrade: «Morreu o Manuel Ribeiro de Pavia. Levou-o uma pneumonia que o foi encontrar depauperado por uma vida quase de miséria. Passava fome! Tinha uma única camisa! Não pagava o quarto há imenso tempo! E nós a falarmos-lhe de poesia…»

Feira do Livro, Lisboa, 11 Junho

A Inês [Fonseca Santos] entrevistou dezenas de escritores em busca de resposta para a pergunta: «Vale a Pena?». O pequeno volume, da prolixa Retratos da Fundação, outra das preciosas colecções dirigidas pelo António [Araújo] para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, contém afinal mais interrogações, mas que permitem retrato breve e dinâmico do panorama literário nacional, sobretudo nos seus aspectos mais funcionais. Pretexto para conversa, em tarde quente, com a autora, Mário de Carvalho e Paulo José Miranda, acerca dos lugares onde foi arrumando os criadores: começa pelo nevoento e disperso do intelectual na actual praça pública, com o desaparecimento do diálogo crítico, entra depois quarto adentro, sítio maior da indispensável solidão, avança pela aprendizagem, depois pelo dinheiro, sua importância e quase ausência, para chegar ao mercado, subtil tirano. Não haverá por aqui consensos, e estranho seria se assim fosse, mas há muitas concordâncias. Estará a vida literária ameaçada pela extinção, seja da voz activa do intelectual, de um lado, e a do olhar-leitor, do outro? A vocação, a impossibilidade de sobrevivência sem o uso da palavra e da imaginação, parece impor-se a cada vicissitude mais ou menos prática, mais ou menos filosófica. O resto, em ideia cara ao Paulo [José Miranda], terá que resolver-se com a leitura criativa, ao alcance de qualquer um: ler criticamente, partilhadamente, acaloradamente, cada vez mais livros, velhos ou novos. Mas afinal não se edita demais?

Largo de S. Sebastião, S. Brás de Alportel, 15 Junho

Temo que seja ignorado, este «Escrytos», volume que reúne os ensaios do Paulo Pires, programador e criador completo, tocando tão bem a escrita como o acordeão, sobre cultura contemporânea, com que inauguramos a colecção Doença Crónica, na Arranha-céus. Tenho pena, pois as suas reflexões, por exemplo sobre leitura ou programação cultural (autárquica), são muito desafiantes. Pensam a partir de uma prática quotidiana, cruzam-se com as leituras mais diversas, praticam a cultura como o fole vital do acordeão: respirando. Quase uma centena de pessoas enfrentaram a canícula em pleno Largo de São Sebastião, sob os auspícios das palavras de Roberto Nobre e à sombra mínima do busto de Bernardo Passos, cuja poesia tenho que visitar, para ouvir Ana Isabel Soares enquadrar com sabor e saber: «Escrever, fixar o vocabulário do pensamento, é uma atitude de resistência ao adormecimento cultural ou à aceitação das sucessivas crises (que sempre vêm). Paulo Pires, escrytor, oferece aqui o seu contributo para contrariar aquilo a que, em Vocabularies of the economy, Doreen Massey chamou a “hegemonia do neoliberalismo”, nas pérfidas consequências que impõe às várias formas de manifestação cultural dos povos.»

Feira do Livro, Lisboa, 17 Junho

Suo as estopinhas, na boa companhia do Pedro [Lourenço], para apresentar à sociedade uma senhora das sombras: Dona Antónia. Inclui-se na colecção Vidas Portuguesas, parceria da Imprensa Nacional, do Duarte [Azinheira], com a Pato Lógico, do André [Letria], modos de fazer que se unem, o do património ao de laboratório, passados e futuros. Foi custoso de processos, mas acabou sendo prazeroso nos finalmentes, com o Pedro a desenvolver metáforas visuais e cores que até no escuro deixam brilhar o lado solar das encostas do Douro. Sabemos pouco sobre a figura, quanto baste para acender o fascínio. Teremos chegado perto?

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