Miguel Canuto, técnico de equipamentos electrónicos de vigilância | Testemunho histórico

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão raras as pessoas que se misturam, inadvertidamente, com a história de uma cidade, mas Miguel Canuto é uma delas. Chega a Macau, em circunstâncias trágicas, em pleno Motim 1-2-3, é pai da última menina portuguesa nascida antes da transição e assiste à primeira sessão plenária da Assembleia Legislativa depois da transferência.

No fundo, Miguel é a Macau dos últimos 50 anos, nascido de uma mistura de culturas, tal como a cidade onde mora. Filho de mãe macaense, com avó materna chinesa e avô mexicano, e pai português com uma costela inglesa, é a personificação da cidade multicultural onde vive há mais de 20 anos.

Nascido em Díli, fruto da incerteza geográfica de ter um pai militar em comissão no antigo Ultramar, cedo conheceu Macau, pelas piores razões. Na sequência da morte do pai em solo indonésio da ilha de Timor, vê-se na iminência de partir para Macau, terra da sua mãe. Tinha, na altura, dois anos e o Motim 1-2-3 tinha acabado de rebentar. Foi a primeira vez que tropeçou na história do território. Esteve por cá pouco tempo, e foi para Portugal com a mãe e os irmãos.

Passados 30 anos retorna a Macau. “Foi um regresso às origens, embora em Portugal tivéssemos muitas visitas de familiares chineses”, revela Miguel, que sentiu alguma nostalgia na altura de voltar a pisar o solo de Macau.

Estabeleceu raízes por cá e teve o seu segundo rebento em Macau, a filha Rita, que nasce envolta em simbolismo, uma vez que foi a última menina portuguesa a nascer no território antes da transferência de Administração. “Para a minha mãe foi o fechar de um ciclo ver a neta nascer em Macau”, conta.

Passados oito dias, Miguel assiste à primeira sessão plenária da Assembleia Legislativa, depois da transferência de Administração, onde trabalhava na altura. Corria o dia 19 de Dezembro de 1999. “Foi uma sessão histórica, votaram-se os princípios básicos e lembro-me bem do nervosismo de alguns deputados”, recorda Miguel. “Sentia-se uma alegria natural, as pessoas estavam felizes e foi algo que também me contagiou, foi memorável, algo de que nunca me vou esquecer.”

Legado de cultura

Miguel, que assistiu ao desenvolvimento de Macau desde a década de 1990, é um homem que gosta de pensar no passado da cidade. Identifica dois momentos de grande impulso em Macau. Primeiro quando “Stanley Ho vai a Portugal e promete a Salazar que, caso a concessão do jogo lhe seja dada a ele, investe o dinheiro em Macau”, promessa que é cumprida, e depois, mais tarde, a liberalização do jogo.

Além da biologia que se nota na fisionomia dos macaenses, Miguel Canuto vê o verdadeiro legado português na cultura e na língua. Aliás, uma das riquezas que reconhece em Macau são as pessoas que conheceu na comunidade macaense e o convívio com gentes de outras culturas. Outra das oferendas é a própria cidade. “Gosto muito de me perder por cá e, às vezes, faço de propósito por isso”, conta.

“Em Macau estamos sempre a conhecer coisas novas, podemos cá estar uma vida inteira e temos sempre coisas para apreender, é uma questão de saber procurar”, revela.

Quanto mais tempo passa por cá, mais compreende que vive num local com uma cultura vastíssima. “Uma só vida não dá para assimilar tudo o que a China tem”, contabiliza o português. Aliás, Miguel Canuto vê um paralelismo entre os vários povos do Interior da China e os povos do Interior de Portugal, que são “pessoas muito curiosas, ao princípio, mas depois muito afáveis se as tratarmos com educação”.

No entanto, Miguel gostaria de ver um aspecto melhorar em Macau: a forma como os jovens que vão para fora estudar são tratados pela cidade. “Isto é uma crítica construtiva, mas há que criar condições para chamar de regresso os jovens e não perder essa mais-valia”, explica. No entender de Miguel Canuto, grande parte da riqueza de Macau não se esgota nos casinos, mas estende-se às suas gentes. Como tal, gostaria de ver formados quadros que saíssem fora do âmbito do funcionalismo público, da advocacia e das profissões relacionadas com a construção civil.

“Precisamos de bons arqueólogos, historiadores, investigadores em química, farmácia, biologia, assim como bons escritores e pessoas do mundo do espectáculo”, aponta Miguel Canuto, um homem que sabe ler a cidade e que, de certa forma, a personifica.

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