Do obscurantismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] recente surto de sarampo em Portugal fez com que a vacinação voltasse a ser discutida, sobretudo nas redes sociais. A vacinação é responsável pela erradicação, por exemplo, da varíola, que só no século XX matou cerca de quinhentos milhões de pessoas. Se somarmos à varíola as restantes doenças que as vacinas contribuíram para erradicar ou diminuir substancialmente, torna-se claro que as vacinas, a par dos antibióticos, foram responsáveis, de forma decisiva, para o maior aumento de população e longevidade de que há memória.

Ainda assim, e a despeito das evidências científicas e empíricas, ainda há quem não vacine os seus filhos. No princípio do século XXI, e surgindo sobretudo como hipótese explicativa para a incidência alarmante de autismo em crianças, surgiu uma corrente anti-vacinação relacionada com um preservante à base de mercúrio presente em algumas vacinas compostas, sobretudo nos Estados Unidos. O estudo que fundamentava essa recusa, de 1998, foi refutado em 2011, por apresentar evidências de manipulação de dados, e a licença do médico que conduziu esse estudo, um britânico chamado Andrew Wakefield, foi revogada. Entretanto, e mesmo depois de retirado o timerosal da composição das vacinas nos Estados Unidos, em 2002, os casos de autismo não pararam de aumentar. Ainda assim, seja pela crença de que a indústria farmacêutica – que em abono da verdade, faz por merecer a desconfiança do público – foi de alguma forma responsável pelo silenciamento do Dr. Wakefield ou pela convicção de que as vacinas são responsáveis por mais danos que benefícios, há quem continue a não vacinar as crianças que tem à sua guarda.

Na verdade, as correntes anti-vacinação são apenas um sintoma de uma corrente muito mais vasta e de certo modo transversal a todas as áreas do saber e que se caracteriza por uma profunda desconfiança relativamente aos produtos da ciência. Lembro-me de quando íamos todos morrer de cancro porque aquecíamos uma lasanha no micro-ondas, de como os telemóveis nos iam transformar num ápice numa sociedade de dementes precoces que fariam parecer os filmes de zumbis pós-apocalípticos uma matiné da Disney. Lembro-me também, por outra parte, de como o ginseng, a aloé vera, a geleia real de abelha e, mais recentemente, as bagas de goji nos iam prolongar a vida, debelar qualquer maleita e, sobretudo, livrar-nos da obnóxia dependência dos produtos da indústria farmacêutica. Guess what. Never Happened.

A gigantesca indústria das crenças alternativas labora na desconfiança que o sujeito tem relativamente à sociedade em que se insere. E nenhum de nós, por mais infra-paranóico que seja, é imune à suspeição de que as pessoas que dão a cara no exercício do poder não são realmente aquelas que mandam. Essa incerteza, muitas vezes justificada pela revelação jornalística dos interesses muito pouco transparentes que movem os políticos e pelas desocultação das relações que estes mantêm com uma espécie de governo paralelo, constituído por homens com dinheiro e poder, é a base da suspeição que os cidadãos têm vis-à-vis a sociedade em que vivem. E, crescendo de forma incontrolável, essa desconfiança alastra para tudo quanto o governo – o oficial e aquele “que efectivamente manda” – legisla, determina e regula. E embora as teorias da conspiração possam abarcar, de facto, qualquer evidência científica, transformando-as em véus destinados a nos cegar perante a verdadeira intenção daqueles que a produzem, as áreas da saúde, regra geral, são as mais propensas a sofrer este efeito de desinformação. E percebe-se porquê. Se os donos-disto-tudo pretendem instaurar uma “nova ordem mundial”, como advoga a maior parte dos teóricos da conspiração, dizimando grande parte da população ou escravizando-a de alguma forma, o meio mais adequado para o conseguir seria manipular as soluções que temos ao nosso dispor para salvar vidas no sentido exactamente inverso. Daí as teorias dos chemtrails, das vacinas incapacitantes, dos muitos e demasiado diversos planos para nos destruir ou amputar mentalmente para serem enumerados fora do âmbito de uma tese de doutoramento.

A verdade é que a haver uma ordem oculta, esta não precisa de gastar um tostão em implementar de forma encoberta uma maquinaria sofisticada capaz de administrar-nos químicos cuja finalidade é tornar-nos estúpidos. A forma como nos comportamos, a maior parte das vezes tão rudimentarmente emocional como acrítica, perante a informação que temos ao nosso dispor, é mais que suficiente.

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