A lotaria do nada e da morte

15/04/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma dramaturgia respeitamos o ethos dos personagens mas introduzimos umas buchas. Como Os Pilares da Sociedade era para ser representada em Moçambique, onde campeia o machismo, eu puxei um pouco pelo feminismo já de si pioneiro de Ibsen e introduzi na emancipada Lona Hessel alguns juízos que lhe sublinham o carácter.

Quem ia representar Lona era Graça Silva, uma das fundadoras do Mutumbela Gogo,  que morreu de repente este fim-de-semana, aos 51 anos, sem que nada o adivinhasse, muito perto da estreia da peça. E eu tinha escrito algumas deixas para a voz dela e a clareza da sua dicção. Quem poderá agora projectar a voz, no tom e no timing certos, e explorando a fundo os seus efeitos no público, replicar com a mesma autoridade: «CÔNSUL BERNIK – Se olhares para dentro de qualquer homem, seja ele qual for, hás-de sempre encontrar pelo menos uma mancha que ele quer ocultar.

LONA HESSEL (olhando-o bem de alto abaixo, alteando a voz, escarnecedora)Um coalho! Um pobre coalho de sangue, urina, caca e presunção… E são vocês que se dizem os pilares da sociedade!».

É lamentável ser ceifada assim, aleatoriamente, uma artista que há trinta anos se entregava ao palco e tão à vontade nas figuras populares como em Gertrudes, a mãe de Hamlet. Pior num país que não cultiva a memória ou patrocina tantas vezes o popularismo fácil e o embuste, negócio a que ela sempre se furtou, preferindo ganhar menos e fazer melhor – um percurso que nem todos entendem. Ou ainda: um percurso que nem todos merecem.

Morreu uma senhora actriz, e apetece dizer: a vida é nesciamente merencória porque nos esmurra até que deixemos de distinguir entre o falcão e a garça!

16/04/17

O mecanismo do sorteio e a lógica do casino infiltraram-se no imaginário global. Talvez devido a que o homem, já não acreditando no equilíbrio das simetrias entre o trabalho e a recompensa, ou entre a boa-fé e a benignidade social, parece agora apostado em recuperar pelo jogo da sorte e do acaso uma ideia de destino.

No entanto, o sistema de sorteio já teve efeitos positivos na História dos homens. Em Atenas, na Grécia antiga, os 500 membros do Tribunal dos Heliastas eram eleitos por sorteio entre os cidadãos livres. E para minimizar aí qualquer juízo imponderado, associado ao risco de que o cidadão com mais de 35 anos chamado para o desempenho de uma função pública fosse imprestável, deu-se um impulso galvanizador à educação, em todas as áreas.

Hoje prefere-se produzir tele-sorteios ou programas de busca de “talentos”, promovendo a “lotaria genética”, a apostar previamente na formação.

Na semana passada um grupo de hackers fiéis ao DAESH, o UCC (United Cyber Caliphate) divulgou uma lista de mais de 8700 nomes e endereços de norte-americanos que espera ver mortos pelas mãos dos lobos solitários. “Matem-nos onde os encontrarem!”, incita.

A novidade é que a lista inclui nomes alegadamente escolhidos ao acaso, enquanto as listas anteriores se focavam em nomes de responsáveis, como políticos, chefes religiosos, etc. Agora não, veio o vento de Deus de que nos fala o Ezequiel e sopra de onde quer.

Quando a culpa fica indeterminada, o que atacamos? A inocência. É estranho que tal se arrogue em nome de Deus. Que já não se busque nem a justiça, nem quem determina. E em nada diminui o crime saber que os ossos do defunto são a consolação das violetas.

Entretanto, se pensarmos no que declarou David Altheide, professor jubilado do Arizona, ao DN: «Trump apelou a um passado que nunca existiu. Com o seu slogan “Fazer a América grande de novo” (…) quando foi isso mesmo? (…) De certa forma, Trump apresentou uma espécie de quadro em branco e as pessoas podiam preencher as suas próprias ideias acerca do que o ser grande era.», compreendemos que nos situamos num sistema de lotaria em que cada um já “imagina” o seu próprio prémio.

Miséria franciscana que redobra quando lemos: «A obra, intitulada “Votar nos Democratas: Um Guia Completo”, da autoria do jornalista Michael J. Knowles, tem 1235 palavras e 266 páginas… quase todas elas em branco. O livro tornou-se bastante popular no seio do Partido Republicano, incluindo junto do presidente Donald Trump», porquanto, sendo natural que a piada tenha tido sucesso, deprime constatar que isso celebra a suficiência com que se admite como ganho um zero de imaginação, tal e qual se depreende do que se segue: «O livro estará a ser um sucesso entre os conservadores americanos, depois de um outro livro de páginas brancas se ter tornado popular entre os liberais, de seu título: “Porque é que Trump merece confiança, respeito e admiração”.»

Afinal, entre os ganhos que só eu imagino, as páginas em branco, as convicções que eu alucino, a sorte e o descaso e o défice total de imaginação – rimos de quê quando a roleta rola?

18/04/17

Não era a lua quem cruzava a perna, era ela. E não havia nuvens naqueles joelhos. Que belo avental seria eu para a sua nudez, desejei. Chegou a minha filha ao café e baixou-me a gripa, desviando-me da sombra dos salgueiros, mangueiras e jacarandás, dos recônditos e miríficos leitos onde se escrutinam os buracos que existem numa agulha. Pai, posso ir passar o fim-de-semana a casa da minha amiga? A entrada da miúda já me tinha eliminado a vantagem inicial, agora, nas costas dela, via-la retirar-se, a dos joelhos cor de cobre, rompido o fio da oportunidade. Responde rápida, já estou atrasada; a minha amiga está no carro lá fora, com o pai, estão à minha espera. Percebo aí o sentido do verso de Rene Guy Cadou:”Je suis en retard sur la vie.” Crescer é isto: ficar em atraso com a vida. E então respondo: não, não podes! Mas porquê? Porque a prontidão do livre arbítrio é um dos direitos inalienáveis de ser pai!

Quem é o porco-espinho que me bufa junto à prata dos cabelos?

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