Não mexe

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]ouve uma altura em que deixou de se perceber o que se estava a passar, o que é mau, porque dá azo a especulações. De um lado, dizia-se que era para ir abaixo, porque se não fosse pela força das máquinas, o vento iria tratar do assunto, com consequências imprevisivelmente más. Do outro, falava-se em conservação, na preservação de não se sabia bem o quê, se era um apenas, dois, cinco, todos ou metade. Houve muita confusão numa matéria sensível, o que não é bom.

Há dias, as coisas tornaram-se mais claras: afinal, Lai Chi Vun não vai ser demolido, depois de já ter sido ligeiramente demolido. Não vai tudo abaixo por enquanto, para se estudar o valor patrimonial dos estaleiros, para se pensar na classificação das estruturas que ali estão. Com sorte, e a concretizarem-se os desejos de alguns, a vila vai ficar mesmo como está. Mas arranjada e mais bonita, mais segura também, para que ninguém leve com teca na cabeça.

Estranho processo este o da povoação de Coloane. De um lado, os Assuntos Marítimos que, a dada altura, tinham invariavelmente a mesma resposta para dar: é para demolir, a segurança e coisa e tal. Todas as questões que se foram colocando mereceram a mesma resposta, como se, do outro lado do email, estivesse uma máquina e não uma pessoa. Pergunta-se se é branco; na réplica diz-se que é o ano do galo. Irritante hábito este, o de as pessoas fingirem que não entendem o que se lhes pergunta. Irritante hábito este, o de as pessoas fingirem que não estão a ouvir, impávidas e serenas, mesmo quando há alguém que lhes grita ao ouvido. Mas adiante.

Lai Chi Vun correu politicamente mal. Emenda-se agora a mão e ainda bem, que isto da face tem muito que se lhe diga, mas não importa nada quando em causa estão valores mais altos do que as bochechas de uns e de outros. Lai Chi Vun correu politicamente mal porque quem decidiu que era para ir abaixo não foi capaz de perceber o que está ali em jogo. Não foi capaz de compreender o que querem as pessoas de Macau.

Não é preciso ter-se um doutoramento em Sociologia, nem um mestrado em História para se perceber que os estaleiros têm um significado especial para muita gente – não só para quem ali vive, mas para muitas mais pessoas do território.

Basta ler duas páginas sobre o assunto num jornal qualquer, escolhidas de forma aleatória entre o muito que se escreveu acerca da matéria, para se perceber que Lai Chi Vun tem uma característica especial: ao contrário da calçada à portuguesa, das Ruínas de São Paulo ou da Igreja de São Domingos, os estaleiros representam uma história que é só das pessoas de Macau, independentemente das influências externas nas embarcações que ali foram sendo construídas. É um passado de pessoas daqui, de gente que nasceu, viveu e morreu nos barcos e para os barcos. É um passado que tem que ver com a subsistência, com o saber fazer, com a possibilidade de se construir e também com a ideia da partida, porque é um passado virado para o mar, para a hipótese de liberdade.

Lai Chi Vun representa ainda uma forma diferente de contar os minutos. Ali, o tempo passa mais devagar do que no reboliço que alguém inventou para esta cidade, que nos consome os anos e a vida. De algum modo, mais do que ser a última testemunha de uma actividade desenvolvida em Macau, Lai Chi Vun é também do pouco que resta de um território que muitos gostariam de ter visto evoluir a uma escala humana.

Ainda bem que se foi a tempo. Sabe bem dar boas notícias e ter a ilusão de que, nesta terra, não contam só os interesses de quem destrói o que é autêntico para construir o que é pastiche. Conforta a alma pensar que ainda se pensa em quem quer apenas continuar, por entre a teca, a ver o dia desaparecer na água.

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