Subidas

Horta Seca, 22 Fevereiro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda Helder, claro, que há muito para digerir no seu mais recente, Camões e outros contemporâneos (Presença). Ninguém como ele, justamente, fez de Camões meu contemporâneo. Puxou dos altares mais ou menos laicos, sacudiu-lhe o pó por desfastio, e, na vez de lhe puxar lustro, leu-o sem o retirar do seu tempo. Percebeu, então, que o poeta havia sido pioneiro do entendimento do corpo como instrumento de conhecimento da natureza das coisas, e com isso se arrogava o direito à felicidade na terra, para já, sem se desfazer da possibilidade de a repetir nos céus. Além dessa humanidade toda feita de malandragem, muito mais descobriu embarcando com ele, por exemplo que «O seu poema havia sido afinal uma viagem através de dúvidas em relação ao passado, de desespero em relação ao presente e de incerteza em relação ao futuro. Nós somos esse futuro.» Vai ao osso, este «Luso, filho de Baco», na interpretação sempre deleitosa, mas também na conclusão desgostosa. «Fazendo jus aos avisos de Sá de Miranda e de Camões, as riquezas das colónias foram servindo, ao longo dos séculos, para sustentar a oligarquia portuguesa, e por isso pouco serviram para o desenvolvimento económico e social da nação portuguesa.»

Horta Seca, 22 Fevereiro

Auto-retratos, de Paulo José Miranda, foi incluído na pequena lista dos candidatos ao grande prémio das Correntes d’Escritas, que distingue o melhor livro de poesia dos últimos dois anos. Os prémios literários tornaram-se, por isso, tema da minha agenda. E temo que assim continue, em chegando ao festival. Não acredito na fórmula, que pouco diz da real qualidade, que depende de tantas variáveis quanto combinações no euromilhões, que gera mais intrigas que telenovela mexicana, que excita bastidores e desperta os podres poderes. Está por fazer estudo aprofundado que, excluído o não despiciendo cifrão, me diga em que serviu ao labor literário do autor laureado. Reforço de auto-estima? Meia hora de visibilidade? Por dever de função, pode ganhar-se mais quatro ou cinco leitores. Talvez. Na arquitectura das convenções percebe-se que pode vir a ser ora porta, ora varanda, aqui parede falsa e ali escada. Fica por saber que construir: albergue espanhol ou casa de repouso? Coube em sorte Armando Silva Carvalho, parecendo confirmar por aqui a tendência de premiar mais a obra completa, que o volume solto. Antes assim. Podia ser pior, muito pior.

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 23 Fevereiro

Sísifo fecha a trilogia e empresta-lhe o nome. Depois da paixão, em Gnaisse, e da perda, em Por Mão Própria, somos chamados à iniciação com Petrarca a marcar as respirações e tendo Camus por companheiro. Nada mais, nada menos. Luís Carmelo atinge aqui um cume. Logo no horizonte se apresentará montanha maior, mas este desafio foi domado. Para além do caleidoscópio da narrativa – um achado, este modo de organizar o que se vai contando desfazendo as coincidências, iluminando perspectivas ao infinito – as personagens possuem cativante densidade e as rochas em que sustentamos os passos da subida são de prosa poética brilhando com grande intensidade.

Esta semana, que acompanhei as suas ansiedades em variados momentos, percebi o que sabia. A vista que conta alcança mais escalando o monte Carmelo, e basta relembrar o seu Genealogias da Cultura, para tornar cristalino o que digo. O Pedro Teixeira Neves, ao passar-lhe a palavra, aqui na mesa, disse que ainda não tinha a atenção que merecia. Alguma ganhou ao responder ao mote «se as torturarmos as palavras acabarão por confessar» com uma metáfora que sobrevoou o Cine-Garrett cheio: um dos mais belos objectos inventados pelo homem é o boomerang, que constrói espaço com velocidade e movimentos sobre si a partir de uma dinâmica entre dois pontos. Para o mano Luís, que explicou com a sua característica dança de braços (ver foto), os textos que foram desenhando nos ares a tradição de que somos feitos, resultam da dinâmica entre a revelação e a confissão. Tocar o alto e experimentar o íntimo, que mais interessa?

Atlântico, 24 Fevereiro

Para a Isabel, poema breve por acabar. «Palma sobre palma/estendi-te a mão/para que não estivéssemos sós/ao descobrir na sabedoria/do crepúsculo uma quinta/estação pós-primavera//a das reparações»

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 24 Fevereiro

Com tanta palavra atirada ao ar, o chão dos festivais literários muda com os dias consoante o lento desfiar dos oradores. Pode ser tapete, conforto baço que abafa o som dos passos, onde só o pó contém memória de vida. Pode ser feito de berlindes, obrigando-nos a esforços compassados para não cair em tentação. Algumas palavras, de tão leves, desfazem-se no ar com o som das palmas. Outras são vistas sobrevoando cabeças em busca de memórias que as conservem. Também as há pesadas, das que, ao cair e se não nos desviarmos, nos pisam com estrondo os calos, nos marcam com nódoas e arranhões. Vai sendo raro, que a cultura do presente pede ar condicionado, maneiras de salão, o refresco mentolado do chiste. Brita ou areia, acontece por vezes. De entre todos, abomino o chão movediço, pegajoso da babugem do diz que disse, da quotidiana telenovela que mastiga cada vocábulo em asco morno.

De súbito, o relâmpago. Alguém diz que a literatura se faz, não para reproduzir o mundo, mas para o acrescentar. Em luta. «Literatura – a poesia – é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, não seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, gastas, dos outros, não para dizer o mundo – para isso basta-nos uma mão cheia de enredos de dicionário –, mas para o construir pedra a pedra». Rita Taborda Duarte deu-me chão. E se ando precisado dele…

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