Escândalo | Abusos sexuais de menores na Igreja

Tem vindo a ser uma notícia recorrente, transversal a todos os continentes, escondida pelas mais altas esferas eclesiásticas. Esta semana foi revelado que na Austrália, nas últimas seis décadas, sete por cento dos padres católicos foram acusados de crimes sexuais contra menores. O Bispo de Macau diz que desconhece a situação

Mas Jesus lhes ordenou: Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas.

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s evangelizadoras palavras, que se encontram no Livro de Mateus, têm ganho um contorno sinistro nas últimas décadas. Durante séculos, a Igreja Católica gozou de um peso político e social desmesurado, reinando na Terra e nos Céus. Porém, com a laicização dos Estados a sedimentar-se um pouco por todo o mundo, alguns podres vieram à superfície, nomeadamente o abuso sexual de menores.

O mais recente e horripilante exemplo foi o da Austrália. No início desta semana, uma comissão governamental criada para o efeito tornou público que sete por cento dos padres que trabalharam no país, entre 1950 e 2010, foram acusados de crimes sexuais com crianças. Destes casos, muito poucos tiveram seguimento, revelando outra prática endémica em situações semelhantes que se passaram no mundo inteiro: o encobrimento. Não só as queixas dos menores foram relegadas para a gaveta da “má publicidade”, como os criminosos foram mudados de paróquia, sem qualquer punição, livres para continuar a espalhar terror.

Só agora estes casos chegam a tribunal, sendo que alguns demoraram muitas décadas até se aproximarem da justiça terrena. O reitor da Universidade de São José, Peter Stilwell, considera o processo escandaloso. “Aliás, só o indício é preocupante.” Acrescenta que é obrigatório que se “faça uma investigação sobre estes casos de abusos sexuais de menores, quer na Igreja, quer noutras instituições”.

No ano passado, o mais alto responsável da Igreja Católica em solo australiano, o cardeal George Pell, admitiu que “a Igreja cometeu enormes erros, fez escolhas catastróficas ao recusar acreditar nas crianças abusadas”. O clérigo ainda fez “mea culpa” por ter mudado padres acusados de pedofilia de paróquia em paróquia, confiando de mais na terapia para resolver o problema. No fundo, mantendo em segredo os abusos, numa autogestão imune a códigos penais.

As informações compiladas pela Comissão Real de Resposta aos Abusos Sexuais de Menores, organismo criado pelo Executivo australiano para investigar a dimensão da polémica, são das mais substanciais e detalhadas de entre os vários escândalos do género. A investigação revelou que, entre 1980 e 2015, 4444 pessoas apresentaram queixa de abusos a 93 autoridades católicas. Num detalhe que parece transversal a casos semelhantes, as piores e mais frequentes ofensas foram cometidas em escolas e lares para crianças vulneráveis. De um universo de 309 casos que a comissão referenciou à polícia, 27 já tiveram acusação, sendo que 75 ainda estão sob investigação.

Em comunicado emitido pelo Vaticano, o arcebispo de Sidney, Anthony Fisher, declarou-se “pessoalmente abalado e humilhado” pela descoberta. Fisher mostrou-se disponível para “assistir aqueles que foram prejudicados pela Igreja”, e empenhado em trabalhar para cimentar uma “cultura de maior transparência, responsabilização e segurança das crianças”.

Problema endémico

O caso australiano está longe de ser único, com os escândalos a espalharem-se, por exemplo, pelos Estados Unidos, Argentina, Irlanda, Inglaterra, Polónia.

Durante a década de 1990, a Bélgica foi abalada pela notícia de abusos sexuais de menores por padres católicos. Devido ao elevado número de casos reportados, à semelhança da Austrália, foi criada uma comissão especial para averiguar as alegações. A investigação revelou cerca de 500 queixas de crimes sexuais por alegadas vítimas, tendo sido citados 320 supostos abusadores. De entre os suspeitos, 102 eram membros da Igreja, oriundos de 29 congregações. Os factos que revoltaram a sociedade belga deixaram marcas profundas na forma como a população se relaciona com a fé, prosseguindo uma tendência de diminuição dos baptismos e de comparência em sacramentos. Além dos traumas causados, na sequência destes escândalos 13 alegadas vítimas cometeram suicídio.

Para o padre Peter Stilwell, este período conturbado que a fé vive não coloca em cheque o futuro da fé. “A Igreja está cá há 2000 anos, e acho que está aí para durar”, comenta. No que toca aos efeitos produzidos no número de fiéis, é um aspecto “secundário, os actos é que são a questão primária e uma chamada de atenção para a consciência da Igreja, aliás, ela é julgada pela sua própria mensagem”.

A resposta de Roma

Apesar de o Vaticano ter tido apenas condenação e promessas de firmeza a lidar com estas questões, muitas foram as vozes críticas em relação à posição assumida por Roma. Investigações internas, falta de denúncias às autoridades policiais e a descoberta de mais escândalos ao longo das décadas fizeram abalar as fundações da Igreja.

Na sequência dos escândalos de abusos sexuais nos Estados Unidos, David Clohessy, director de uma rede de sobreviventes de abusos, comentou o registo de Papa Bento XVI como “terrível”. É de referir que antes de ser ordenado máximo pontífice, o Cardeal Ratzinger chefiou a Congregação da Doutrina da Fé, entidade que tratou dos escândalos sexuais. “Ele leu milhares de páginas de relatos de casos de abusos, do mundo inteiro, e sabe muito mais ainda sobre encobrimentos. No entanto, pouco fez para proteger crianças”, dizia Clohessy ao Guardian, na altura. Na mesma linha, Jakob Purkarthofer, da plataforma austríaca de vítimas da violência sexual da Igreja, dizia que “Ratzinger fez parte do sistema co-responsável por estes crimes”.

O padre Peter Stilwell não concorda, considerando que a resposta do Vaticano, desde o início destes casos de escândalos sexuais, tem sido muito clara. “Desde o tempo do Cardeal Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé, agiu-se com grande firmeza, até com uma certa incompreensão por parte das conferências episcopais e de alguns bispos, que esperavam encontrar alguma defesa da instituição”. O reitor da Universidade de São José considera que, quando se trata de encobrimento, esta é “uma questão de todas as instituições e a Igreja não escapa a isso, uma vez que se acha sempre que se consegue resolver os problemas sem dar muito nas vistas”.

Um novo dia

A consciência universal evolui ao passo da sociedade e é incontestável que, ao longo da história, a pedofilia foi vista com outro olhar, diferente dos dias de hoje. Mesmo dentro do século XX, o sexo com menores não era considerado um crime hediondo, como é actualmente. “A pedofilia ganhou em termos de consciência geral um relevo, que merece, que não teria há uns 30 anos. Antes achava-se que havia um deslize, um problema, mas que a pessoa resolvia, não se pensava na vítima”, comenta Peter Stilwell. Não havia uma percepção social das consequências para as vítimas, e para a forma como o abuso sexual danifica, para a vida, toda o desenvolvimento de uma criança.

Com a ordenação do Papa Francisco houve um virar de página, pelo menos no que toca a uma abordagem mais empática, na forma como o Vaticano passou a tratar estes casos. O actual Papa dirigiu-se às vítimas directamente, rezando por elas, pedindo-lhes desculpas. Peter Stilwell acha que o líder do Vaticano “dá voz a um trabalho que já vem sendo feito há algum tempo”.

O reitor adianta ainda que o que se passa na Austrália é um exemplo de progresso institucional de Roma a tratar destas questões. “Os bispos australianos são chamados a uma comissão real para fazerem depoimentos públicos. Há uma evolução da Igreja e o Papa deu a sua bênção. Nesse aspecto, a Igreja poderá servir de referência para outras instituições que também têm estes problemas”, comenta.

Desde a década de 1950 até 2012, o Vaticano já pagou em indemnizações mais de três mil milhões de dólares a vítimas de crimes sexuais cometidos por membros do clero. Todos os anos aparece um novo escândalo, numa instituição que muito lentamente pondera terminar com o celibato entre os sacerdotes. O caso australiano foi apenas mais um.

Instado a comentar este escândalo, Stephen Lee, Bispo de Macau, afirmou: “Não faço ideia que se passa na Austrália, porque estou em Macau, portanto, não acho que estou numa posição de prestar qualquer comentário”. E mais não disse.

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