O desigual

 

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ascemos todos irremediavelmente iguais. É uma verdade que não agrada a todos, bem sei, mas é um facto incontestável. Nascemos iguais no desamparo da separação do ventre, na solidão do corte do cordão umbilical, na necessidade extrema de aconchego, na insaciável necessidade de pele. Só na morte voltamos a experimentar semelhante condição de igualdade. Também ela é solidão, mesmo que haja outras mortes à nossa volta.

Nascemos inevitavelmente iguais, mas o problema acontece logo depois, na tesoura que nos corta a protecção e no pano que nos embrulha. Apesar de sermos muito iguais no acto de nascer – mesmo com todas as diferenças físicas que partilhamos uns com os outros –, há quem seja envolvido no único farrapo disponível. E depois há quem tenha um lençol lavado e uma manta quente. Deixamos de ser todos tão iguais.

A desigualdade vai acontecendo ao longo da vida. Pais, sem pais, com educação, sem ela. Religião, sem religião, pão, sem pão, saúde, sem ela. A desigualdade é uma cena tramada essencialmente para aqueles que são mais desiguais do que os outros, porque reduz a hipótese do sonho. Olhamos para os nossos filhos, pequenos, e imaginamos que terão o mundo ao alcance do que quiserem dele. Aos filhos de quem vive na guerra resta, com sorte, a sobrevivência.

No meio de um mundo profundamente desigual, há boas almas que lutam pela igualdade. Deixam os lençóis e as mantas quentes em que nasceram para estarem ao lado daqueles que, nascidos iguais, tiveram o azar dos acontecimentos. Ou o azar da cor da pele. Ou o azar da religião que passou a maldita. Boas almas também não faltam entre os que levaram com toda a desigualdade possível: têm um farrapo a mais do que o vizinho e, por terem essa fortuna, partilham-na com quem precisa dela. É assim que sucede desde que se escreve a história.

E desde que a história se escreve que há loucos e que há gente com os princípios ao contrário. Quando um louco tem os princípios ao contrário, assume contornos assustadores. Quando um louco tem os princípios ao contrário e, qual cereja podre em cima do bolo, é também ignorante, aqueles que estão em seu redor devem ter cuidado, muito cuidado.

Desde que se escreve a história que loucos deste género chegaram ao poder, muitas vezes de forma legítima, por vontade da maioria popular. Quando se sentam na cadeira do poder, pouco ou nada interessa por que razão ali se instalaram, uma vez que já se esqueceram. E como são loucos, fazem o que lhe dá na gana, contornam obstáculos e derrubam opositores, calam as vozes de protesto e iludem os apoiantes com algum pão e uma dose substancial de espectáculo. Nos povos em que a maioria pouco mais tem, ao nascimento, do que um farrapo a embrulhar o corpo, os loucos costumam permanecer no poder; nos sítios onde a maioria tem, pelo menos, um lençol limpo, o caso costuma ser outro. Mas não existe uma regra, diz-nos a história desde que é escrita.

Há um homem no poder do mundo, neste momento, que desconhece que todos nós, quando nascemos, somos irremediavelmente iguais. Não é o único a pensar assim – o que não falta é gente por aí com o mesmo pensamento quadrado, ideias que chocam com os ângulos da forma geométrica e dali não saem. Todos nós conhecemos pessoas assim, por esse mundo fora e neste mundo aqui dentro também. Os imigrantes do Sudeste Asiático são menos gente. Os migrantes da China Continental são menos gente também. Os muçulmanos são isto. Os judeus são aquilo. Os judeus foram sempre muita coisa, consoante os anos em que a história se escreveu, e os muçulmanos também. E os católicos e os budistas e todos os outros, os brancos, os menos brancos, os pretos, os mulatos, os de olhos rasgados e os de olhos menos rasgados. É o que nos diz a história desde que é escrita e eu acredito nela.

O problema acontece porque temos um homem com poder no mundo que junta loucura, princípios ao contrário, ignorância e uma extraordinária influência em termos globais. É um homem que não sabe que a diferença entre os homens é uma questão de cor, pelo que somos todos iguais nessa desigualdade. E que a verdadeira diferença, a mais importante de todas – a impossibilidade de sonhar com a igualdade – só existe por causa de homens mais ou menos como ele.

Desde que a história se escreve que os homens revelam uma enorme incapacidade de aprender com a história que se escreveu. Quero acreditar que, desta vez, será diferente. E que tudo aquilo que leio não passará de uma experiência muito breve de um louco que nasceu igual a mim, morrerá com igual solidão, mas a vida dele fez-nos desiguais, não pela cor laranja que exibe e que eu não tenho, mas por lhe terem acontecido princípios ao contrário e uma ignorância que toca no azar a poucos.

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