Consenso na gaveta

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s leituras sobre as razões para a vitória de Donald Trump seguem-se agora as análises sobre o que representam as prioridades estabelecidas pelo 45.º presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Trump não quis deixar espaço para interpretações dúbias sobre o que pretende fazer no cargo: logo no primeiro dia, mandou apagar todas as referências ao aquecimento global no website da presidência e anunciou a retirada dos EUA da Parceria Trans-Pacífica (TPP, na sigla inglesa, o acordo de comércio com os países da orla do oceano Pacífico) e o fim do Obamacare.

Sobre a primeira questão, Donald Trump soube melhor do que ninguém dizer aos americanos o que eles queriam ouvir. A campanha eleitoral é sobretudo isso: dizer. Já há muito que deixou de ser um debate, uma troca de ideias ou de propostas. A campanha política, do ponto de vista dos candidatos, não pretende esclarecer ninguém, procura acima de tudo corresponder às expectativas dos potenciais votantes. Aliás, quanto menos esclarecer, melhor. E Trump esclareceu pouco. Não explicou, por exemplo, como quer tornar os EUA grandes outra vez; não falou das consequências para as empresas norte-americanas do facto de os Estados Unidos se irem fechar sobre si-próprios; nem tão-pouco do efeito para os interesses globais dos EUA de uma menor contribuição de Washington para a paz e segurança mundiais.

As primeiras medidas que tomou na esfera internacional (no que diz respeito ao envolvimento dos EUA no combate ao aquecimento global e ao fim da participação dos EUA na TPP) não deixam de ser sinais – e a política faz-se de sinais – inequívocos, aliás, de que os EUA não vão estar tão presentes na cena internacional. Há oito anos, por exemplo, Barack Obama também utilizou uma estratégia comunicacional semelhante, tendo assinado na mesma Sala Oval a ordem executiva que determinava o encerramento de Guantánamo, num claro contraste com a política seguida até então pelos Estados Unidos no combate ao terrorismo internacional, preconizada por George W. Bush.      

Na verdade, por consequência da governação de Barack Obama, os Estados Unidos estão hoje maiores – utilizando a terminologia “Trumpiana” – do que estavam quando o antigo senador de Chicago chegou à Casa Branca. O estado geral da economia norte-americana melhorou nos últimos oito anos. O Produto Interno Bruto cresce constantemente desde 2010. A taxa de desemprego, por exemplo, caiu de perto dos 10 por cento, em 2010, para abaixo dos 6 por cento, no ano passado. É evidente que, devido à deslocalização de fábricas para mercados em que o custo do trabalho é menor e aos avanços tecnológicos que tornam redundante a presença de pessoas no processo de produção, existe desemprego no chamado Midwest, o conjunto de estados que constitui a América fabril. E foi aqui que os homens brancos pouco qualificados foram votar em massa em Donald Trump, assegurando-lhe a vitória no colégio eleitoral. A eles, sem explicar como, prometeu-lhes arranjar novos empregos.

Em relação à segunda parte da questão, os efeitos para o sistema político internacional do isolacionismo anunciado por Trump, a mais significativa é que a cartilha de Washington, quer para o desenvolvimento humano quer para o sistema político, está a ser colocada na gaveta. O liberalismo económico e o liberalismo político estão a sofrer um ataque sem precedentes. Apesar de todas as críticas de que foi alvo ao longo dos anos, das experiências alternativas como a que está em vigor na China, com o modelo de intervenção económica do governo central (o chamado “consenso de Pequim”), não deixa de ser extraordinário que o consenso de Washington esteja a ser posto de parte pelo próprio país que o inventou e que o universalizou.

Num artigo brilhante intitulado “Liberalism in Retreat: The Demise of a Dream”, publicado na mais recente edição da Foreign Affairs (Janeiro-Fevereiro), Robin Niblett, director de um dos think tanks mais reputados do mundo, a britânica Chantham House, o Instituto Real de Assuntos Internacionais, perspectiva que a principal consequência para o mundo da eleição de Donald Trump e da implementação de políticas proteccionistas a par da retirada dos EUA de instrumentos multinacionais é o enfraquecimento da ordem liberal que tem marcado o mundo desde 1945.

As instituições internacionais criadas no final da II Guerra Mundial e nos anos 1950 (como o embrião da União Europeia) tinham como objectivo principal o progresso humano. Para o alcançar, preconizavam um mundo de mercados abertos, democrático, de respeito pelos direitos humanos. Todos estes valores haveriam de chegar um dia a todos os cantos do mundo. As Nações Unidas estiveram sempre na vanguarda da imposição global destes princípios, ao tentarem garantir a aplicação de uma agenda liberal, quer económica quer política, nos diversos países onde estão presentes missões políticas ou de manutenção de paz.

Esta visão do mundo tem, no entanto, caído por terra. Sofreu um abalo tremendo com a crise financeira, económica e social que começou em 2007-2008 e que levou às intervenções internacionais na República da Irlanda, em Portugal e na Grécia. O respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais é cada vez mais ténue, mesmo em Estados-membros da União Europeia, como a Hungria ou a Polónia, e questionado no que aos refugiados diz respeito. A democracia não é manifestamente o sistema político que garante como nenhum outro o desenvolvimento humano – Pequim e o seu capitalismo de características chinesas retirou da pobreza extrema 800 milhões de pessoas, segundo a contabilidade do insuspeito Banco Mundial. Os mercados só devem ser abertos até ao limite dos interesses do país em causa. No fundo foi isso que Donald Trump veio clarificar, com a clareza própria dos populistas: “America first!”

Como conclui Nibblet, as democracias são resistentes e esta conjugação de mercados abertos e de direitos humanos poderá persistir. Mas, por ora, tudo indica que vai passar uma temporada na gaveta.

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