Alinho pelas duas

21/01/2017

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ete da manhã, vou buscar a minha filha ao aeroporto. Há ano e meio que não nos víamos. Desta vez chegou acompanhada de namorado. O qual, ao fim do dia, não consegue calar o desabafo: «É estranho estar numa cidade onde todas as casas, janelas e varandas estão gradeadas!». Na mouche. A paranóia securitária, em Maputo, é total e alimenta uma indústria de segurança que não faz qualquer sentido em relação aos números concretos de delitos que se praticam na cidade. Maputo, na «cidade de pedra», é relativamente pacífica, não se comparando aos relatos que nos chegam de Joanesburgo ou Luanda.

Uma vez comprei o Notícias que em grandes parangonas anunciava: « Cinquenta crimes cometidos esta semana na cidade». Pus-me a ler a descrição dos crimes e avultava o caso do rapaz que tinha partido as unhas postiças a uma velhota e o pai que chegou bêbado a casa e começou a implicar com os filhos para depois malhar, por engano, na irmã da mulher, em vez de na consorte. E explicava: «Quem a manda ser gémea? Com a babalaza nem vi que lhe faltava a verruga no nariz que a minha tem…». Bom, tinha havido cinco roubos por esticão e dois homicídios. Lisboa não terá menos delitos e crimes semanalmente, não tem é uma imprensa histérica a alimentar o medo e uma indústria de segurança a “alimentar” a imprensa.

Quando cheguei há doze anos e fui passar os primeiros meses (em casa de família) a Sommerschield, o Restelo local, o bairro onde vive a grande burguesia em Maputo, divertia-me a passear por aquelas ruas arborizadas com dois guardas, armados e fardados, sentados à porta de cada vivenda. Divertia-me sobretudo ao crepúsculo, quando eles começam a dormir. É uma coisa que se pega. Ou conversam entre eles, animadamente, em voz alta, na inércia de um ócio que só a farda ilude, pois durante o dia mais não fazem do que abrir o portão uma dúzia de vezes, ou um começa a chonar e é imitado pelo seguinte e a cadeia propaga-se, para grande segurança dos que guardam.

Uma vez escrevi numa crónica que se fosse antropólogo faria uma investigação sobre os sonhos dos guardas em Maputo. Tive um telefonema de um amigo que era PCA (administrador) de uma empresa de segurança e transmitiu: Eles não acharam muita graça. Não sei porquê – sonhar é um direito indeclinável.

22/01/2017

Há uma interessante correspondência trocada entre George Sand e Gustave Flaubert. O objecto dessas cartas é o desacordo sobre a concepção de literatura que lhes coube abraçar. Sand reconhece a superioridade artística de Flaubert, mas rebate: «Entretanto, creio que lhes falta, e a você sobretudo, uma visão mais definitiva e ampla da vida.» E acusa-o de faltar vida aos quadros humanos que ele retrata, pois o seu método, adianta Todorov, donde saco a informação, é sistemático em demasia e, por conseguinte, monótono, ao que ela contrapõe:«Quero ver o homem tal como ele é. Ele não é bom nem é mau: é bom e mau. Mas há algo ainda, a nuance, a nuance que para mim é o objectivo da arte». E retoma o tema numa carta seguinte:«A verdadeira realidade é uma mistura de beleza e feiura, de palidez e luminosidade». Assim, conclui Todorov, «aqueles que num determinado momento foram chamados de realistas fizeram uma escolha que trai a realidade: eles obedecem a uma convenção arbitrária que lhes exige representar unicamente a face negra do mundo. O que os niilistas traem não é o Bem, mas o Verdadeiro (sublinhado meu)».

Não só isto é vital – sendo a compreensão disto que me separa conceptualmente de alguns poetas das gerações a seguir à minha – como é evidente que Sand dá aqui um KO técnico a Flaubert.

24/01/2017

Já escrevi duas antologias de fábulas moçambicanas, que foram editadas com ilustrações de artistas locais, a primeira de um maconde, o Matias Ntundo, a segunda, que se reportava a histórias do sul, com bonecos de Jorge Nhaca. Chegaram-me as estórias em forma de borrões orais, recolhidos nos anos oitenta, e cuja transcrição deixava muito a desejar, quer pelo português, quer pela nebulosa com que se apresentava a narrativa, pelo que muitas vezes tinha de adivinhar o veio principal, respeitando, simultaneamente, a lógica não-aristotélica e mágica.

O estado informe deste material genético resulta de não se ter efectuado um trabalho crítico, seja antropológico, seja filológico, sobre as recolhas, deixadas ao abandono, nas instituições. O que me deixava a sós com algumas decisões controversas  sobre a fixação do texto  – além disso, o propósito das duas edições era comercial, não pretendiam ser edições científicas.

Enfim, levantaram-se as resistências, por causa do meu olhar «africanista», que traía supostamente a essência pura e africana das histórias.

Um dia pego num livro de fábulas de Esopo para ler às minhas filhas mais pequenas e descubro que uma das histórias macondes que recriei era decalcada de uma fábula grega. Ora, os macondes não falam grego. Recebo entretanto uma novela de um amigo escritor da Amazónia, o Nicodemos Sena e fico fascinado: a história que ele conta, inspirada numa fábula local, era ipsis verbis, uma fábula maconde. Na mesma altura, a propósito de não sei o quê, releio O relatório de Brodie, de Jorge Luis Borges e descubro estampada no conto A Intrusa  outra das fábulas que havia trabalhado.

Ou são coincidências que dão razão ao Jung quando diz que a partir de um certo estrato psíquico emerge um inconsciente colectivo comum que torna semelhantes os bestiários e as narrativas orais de todo o mundo, ou são uma prova de que todas as culturas resultam do contacto, pelo que não existem essências puras e as culturas são identidades compósitas que nos tornam a todos mais aparentados do que provavelmente gostaríamos. Alinho pelas duas.

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