Ano Novo Chinês | O mundo em movimento

Por estes dias, há milhões de pessoas a viajar na China. E para a China. Apesar das alterações sociais da última década, o ano novo lunar continua a ser a principal festa da família e ninguém quer estar longe de casa. Mesmo que o regresso signifique passar dias em comboios ou na estrada

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão deve ter mais de 20 anos e confessa que, na noite anterior à partida, não dormiu. É entrevistado pela Xinhua e conta que tem pela frente uma viagem de 41 horas. Vai de comboio ter com os pais, que “morreriam de saudades” se, por esta altura, não cumprisse o ritual da reunião familiar.

O homem com quem a agência oficial conversa, logo de seguida, deve andar na casa dos 50. “Claro que tenho saudades de casa”, atira, com as malas na mão. Mostra para as câmaras o que transporta dentro de um saco. “Levo algumas frutas para a minha mãe, tudo importado”, diz, orgulhoso. “Ela já tem 80 anos e não tem dentes. Quero dar-lhe o que há de melhor.”

Os dois entrevistados da Xinhua fazem parte de um grupo de milhões de pessoas que, nas vésperas do ano novo lunar, regressam à terra de origem. “Esta movimentação toda na China é a maior migração interna que se conhece da modernidade”, salienta Fernando Sales Lopes, historiador e mestre em Relações Interculturais.

O modo como a China se desenvolveu nas últimas décadas, com o progressivo abandono das zonas rurais de pessoas que fugiram ao desemprego procurando trabalho nas áreas urbanas, contribuiu em muito para o fenómeno a que se assiste por estes dias.

Aqueles que trabalham e vivem nas fábricas das zonas industriais do país voltam a casa, onde deixaram mulheres e filhos – às vezes, só os filhos. Números de Setembro do ano passado davam conta de que cerca de 61 milhões de crianças foram deixadas nas zonas rurais pelos pais que vão trabalhar nas grandes cidades. Depois há também os que estudam longe da terra natal e que regressam para a entrada do ano novo à mesa dos pais.

A juntar ao grupo da migração, há ainda o da emigração. “Também se deslocam uns milhões do estrangeiro para irem para a China comemorar o ano novo com a família”, observa Sales Lopes.

O ano novo lunar é também festejado fora do país. A data é assinalada em Singapura, na Malásia e noutros países com comunidades chinesas significativas. Londres e São Francisco reivindicam ter as maiores comemorações fora da Ásia. Quase um sexto da população mundial vive em festa a passagem de ano.

Transportes da Primavera

Voltemos à China. As autoridades previam para esta semana um dos grandes picos de viagem do “chunyun”, os 40 dias que compreendem o ano novo lunar e que, numa tradução literal, será qualquer coisa como “transporte da Primavera”. É durante esta semana que regressa a maior parte das pessoas que se encontra longe de casa.

De acordo com as contas do Ministério dos Transportes, estima-se que, diariamente, sejam feitas mais de 80 milhões de viagens até à próxima sexta-feira. Na semana passada – a primeira do “chunyun” –, tinham sido contabilizados 520 milhões, o que equivale a um aumento anual de 3,1 por cento.

Os comboios continuam a ser o meio de transporte favorito, até porque é aquele que fica mais em conta: houve um aumento de quase 22 por cento no número de bilhetes vendidos (61,7 milhões), ultrapassando assim alternativas como as viagens de autocarro ou de avião.

Quanto aos fluxos rodoviários, o ministério diz que as viagens nas principais estradas do país devem aumentar entre oito a dez por cento a partir da próxima sexta-feira, dia em que entra em vigor a suspensão temporária da cobrança de portagens. Até ao dia 2 de Fevereiro, os automóveis não pagam nas auto-estradas, o que faz com que haja um aumento do trânsito um pouco por toda a parte.

Pequim, Tianjin, a província de Hebei, o Delta do Rio Yangtze e, mais perto de nós, o Delta do Rio das Pérolas serão as zonas onde vai ser mais difícil circular, segundo as previsões do ministério.

A Comissão Nacional da Reforma e do Desenvolvimento acredita que, este ano, vão ser feitas 2,98 mil milhões de viagens durante o período entre 13 de Janeiro a 21 de Fevereiro, o que representa uma ligeira subida em relação ao ano passado.

Momento da renovação

Na origem de toda esta movimentação na China está uma explicação de natureza cultural, uma noção cuja origem se perde no tempo. “É o ano novo, a festa da Primavera, é a renovação”, aponta Fernando Sales Lopes, traçando um paralelismo com o Natal. “Em todas as culturas é assim. O ano novo é sempre uma festa familiar. O nosso ano novo não é tão familiar quanto isso porque temos essa reunião da família uma semana antes, no Natal.”

O ano novo chinês, acrescenta, “é uma Primavera, é preparar terras para a sementeira, é preparar tudo para o novo ano, para a abundância, é pedir tudo isso às divindades, pedir felicidade para a família e para que haja comida na mesa”. No tempo em que a China era mais rural, havia uma grande ligação à terra e isso percebia-se nos rituais associados à data. “Hoje uns estarão na terra, outros no meio urbano, e outros ainda estarão noutros sítios do mundo até porque, como sabemos, a emigração chinesa é muito grande”, salienta o investigador.

A festa que aí vem “é um tempo também de respeito pelos ancestrais”. Tudo junto “leva a que seja a grande festa da comunidade chinesa”. O investigador, com obra sobre festividades chinesas, recorda que há outro momento do calendário importante para a família: a Festa da Lua. Ainda assim, não chega aos calcanhares do ano novo.

Os quilómetros que se percorrem, as horas que se passam dentro de um comboio, o tempo de espera nas estações, muitas vezes em condições precárias, explicam-se pelo valor que é atribuído à família na China. E isto apesar de, com o crescimento económico e um ritmo de vida cada vez mais acelerado, a organização social do país estar a sofrer mudanças com consequências também para a relação dentro dos próprios núcleos familiares.

“A família na China é muito valorizada. As famílias chinesas acabam por saber mais quem são e de onde vêm do que nós.”
FERNANDO SALES LOPES, INVESTIGADOR

“A família na China é muito valorizada. As famílias chinesas acabam por saber mais quem são e de onde vêm do que nós”, explica Sales Lopes. “Nós sabemos quem foi o avô e o bisavô, alguns saberão o nome do tetravô mas perde-se a história da família. Nas famílias chinesas não é assim.”

O culto dos antepassados faz com que haja uma grande ligação ao clã e isso acontece independentemente do estrato social. “Poderá parecer algo exclusivo dos ricos, mas não é. Toda a gente tem o seu clã, toda a gente descende de determinado indivíduo que é muito conhecido, ou não, é conhecido na família, mas isso é um factor de união”, vinca o investigador. “A família é um factor muito importante para os chineses, apesar de, às vezes, não parecer, porque a forma como o expressam em público não é tão intensa como a nossa, com muitos beijinhos e abraços.”

Os 40 dias de confusão

De acordo com os arquivos da empresa pública de transportes ferroviários do país, a expressão “chunyun” surgiu pela primeira vez na imprensa chinesa em 1954, para descrever o trânsito intenso que, já à época, se verificava por esta altura do ano novo chinês.

A China sofreu profundas mudanças desde então e também o modo como as autoridades lidam com o fenómeno da migração já não é o mesmo. “Lá vai o tempo em que o fim de ano chinês era comemorado em muito poucos dias. Aliás, era a única folga das pessoas, que trabalhavam o ano inteiro. Hoje é diferente”, diz Fernando Sales Lopes.

A juntar à importância social da festa, está a questão económica, que não se deve apenas ao facto de o país ter uma classe média cada vez mais pujante. “A China enveredou por uma economia de mercado há já alguns anos e, a determinada altura, foi necessário acelerar o consumo interno. A razão para o aparecimento das semanas douradas está aí, na economia. Era preciso que o povo circulasse todo pela China para fazer despesa, para comprar coisas para levar para a família”, explica o investigador. Sales Lopes ressalva que não se trata da componente mais importante do ano novo chinês, mas é um aspecto que não pode ser ignorado.

Os dias que dura o “chunyun” contemporâneo é ainda uma tentativa de evitar um caos ainda maior nas estações de comboios, de camionagem, nos aeroportos e nas estradas. “Por aqui temos meia dúzia de dias, na China são 40, o que é um período importante para as pessoas poderem movimentar-se. É muita gente a viajar”, sublinha. A rede ferroviária de alta velocidade e as novas tecnologias vieram minimizar o impacto, “mas é na mesma uma certa confusão, porque são milhões e milhões de pessoas”.

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