Ora descrente

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo se acreditasse, só porque não faz mal. A inventar uma força para o feitiço. Descrente mas empenhada. À procura de algo que dizer por dentro. Ora. Talvez.

Chorei-lhe no colo pela última vez. A arrefecer, já. Ia dizer que o instante é fundamental no decurso do caminho. Hesitei. E depois pensei: falível. Não fundamental. Aleatório e de tão determinante, absurdo. E depois, de novo, fundamental. No criar de fundamentos. Fundações, alicerces. No colocar lento afinal de uma pequena pedra alinhada num sentido. Na berma. Pedra densa, pequena mas pesada contra o chão. Pesada contra o tempo. E pesada contra um simples sopro. Mas falível se tudo nesse pequeno instante que podia não ser, for apostado sem mais tempo. Quando é assim, coloca-se-nos a vida entre a espada e a parede do inevitável. Sempre dependente de maneira absoluta do instante. Irrelevante. Desprezável e ínfimo para tão grande desígnio. E os instantes não se cruzam facilmente com as intenções. São volácteis. Pequenas plumas à mercê de aragens múltiplas. Desencontradas da meteorologia. Há que ser pedra pequena, o instante. Esperar o tempo. Colocada firme e pesada no seu lugar. À beira do caminho. A desenhar. O.

No intervalo lembrei-me de “Run Lola run”, esse filme em várias versões sucessivas de uma mesma história, em que se vê como um ínfimo detalhe no seu âmago, podia de forma exponencial derivar para desfechos progressivamente mais divergentes. Esse peso do detalhe insignificante e quase sem dimensão, a determinar todo curso de uma história. A ramificação do real possível, encarnado em cada pequena partícula. E depois Oscar Wilde: os nadas. Os pequenos nadas sem relevância de sentido.

Ia dizer prisão, essa, mas não quero esta palavra. A das palavras. Enleio insolúvel de amor e raiva. Enleados nelas como em pedras que se derramam encosta abaixo e penosamente voltamos a emburrar carinhosamente, penosamente, carinhosamente, pela vertente do dia de cada dia. E da noite de cada noite. E do corpo de cada corpo que se revela no espelho de cada espelho, de cada dia. E no estanho cansado de cada noite. Como prática de vodu. Beber num copo bonito de cristal fino, tocar com as pontas dos dedos e fazê-lo tilintar de alegria melódica, e verter sem hesitação o melhor líquido. Bebê-las até que contaminem todo o corpo de torpor bom de calor ígneo e desinfectante. Deixá-las invadir sem defesa todo o espaço imaterial das sensações a recobrir fantasmas de pensamentos oportunistas. Palavras de viajar sempre mesmo que não se possa viajar nunca. Nelas, embarcar de bagagem leve ou nenhuma. De mãos livres para escolher tocar de tacto ligeiro e olhar apurado. Tocar aquelas de que se gosta a perder a razão. Não existe razão que ganhe à desarrazoada ilógica do querer.

Na verdade, penso aqui nelas como em amantes saudosos e desejados. Porque a tudo prestam o seu corpo corrompido. A tudo se vendem alegremente. Mas usar com rigor as tontas. Dar um lanche açucarado às mentirosas convictas e deixá-las para aí a entreter-se gulosamente de outras possibilidades. Já bastam as que dizem sem querer. As que pronunciam bombas num fogo de vista para encantar os olhos. Para empatar o tempo, para iludir umas da realidade que também poderiam ser outras. Eu sofro a tirania às palavras mansas e doem-me mais ainda as palavras tiranas. Sofro da angústia da palavra mas, e da palavra ébria. Mas é delas que se tecem caminhos para fora e para dentro de alguma coisa que se deixa distrair.

Estranhos lugares, os do tempo. O de hoje, por exemplo. Já não bastaria dizer a estranheza de um momento pendurado e periclitante entre outros de igual e furtuita deriva, como sobrepor-lhe o peso imponderável de uma mutação imperceptível que nos abala confunde e desorienta. Como os eixos XYZ a girar sobre si. Diria. Mas em pior. Sem rotação de rotina. O puro caos. Somos os mesmos num mundo outro de outros que nos tornámos na perda. Sem saber. Sem sentir e um dia estamos ali sentadas à mesa a sós, como estranhas que acabaram de se encontrar. A definir uma vida a dois. Uma e a perda da outra. Dela. O meu alguém-raíz. Transportamos a nossa própria gaiola e há que cuidar para que a porta não se feche connosco lá dentro. Lá fora.

Disperso bem, talvez. O da perda. O lugar da perda. Porque ninguém perde o que nunca teve de seu. O que é verdade perdi e não entendo. Às vezes, nada. Já o disse. Do que se enrola em torno dos meus passos. Volutas tresloucadas e espirais barulhentas e é isto vida que fala comigo o tempo inteiro de mim. E eu entendo cada coisa e o seu contrário e, às vezes mesmo, sinto. Como se viesse de um outro planeta e saltasse a escola primária. Uma falha estruturar para sempre na capacidade de leitura e escrita. Nas contas. Como se não pertencesse. Agora mais. Não por estar acima, abaixo. Talvez de lado. Sim aquela pedra. A ver tudo de perfil. Eu que gosto de ver tudo de frente. E não entendo o todo. E aquilo que é maior do que eu tende a sair por todos os poros desta escrita. Mas não saindo continua a intoxicar de dentro.

E depois eu danço. Hei-de dançar. Danço para embalar esta morte oferecida. Danço para a enganar. Porque não a quero mas foi-me presente de quem quero. Alimento-a como a um bicho de estimação. Não a quero mas não a posso devolver a quem ma deu. Alimento-a para não me tornar nela. E danço. Para a enganar. Não lhe procurar o colo interdito e os beijos expirados. Para sempre. A ter que escrever. Preencher o lugar do tacto puro com outras matérias. Esquecer o frio da fronte. A cor doentia e falsa. Pontual no tempo. Quando parou. Ou então só falece quem nunca existiu. Mesmo se todos os corpos voltam ao pó. À existência, não. E a existência nunca volta ao pó. Porque nunca foi.

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