Barbearia Universal: uma homenagem

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]echou a Barbearia Universal, na 25 de Setembro, em frente ao Banco de Moçambique. Desloquei-me para me sentar na sua cadeira junto à vitrina, pronto a entregar-me às mãos de fada do artista e embati no espaço devoluto e no papelinho de despedida de um dos gerentes. Informaram-me depois que o motivo foi um dos sócios ter sido chamado a aprimorar a longa cabeleira da Morte.

Resta-me, em homenagem, contar o sonho que lá tive, da última vez que lá fui – jogavam-se as primeiras jornadas do último Europeu de Futebol.

Entrei desconfiado, diga-se. Cada um tem as manias que pode e a minha é a de que os barbeiros, abusivamente, me primem o cocuruto com os polegares, como se estivessem a avaliar o amadurecimento do melão. É prática que abomino, desde miúdo, apegado à tola incerteza de não ser uma cucurbitácea.

Mas aquelas mãos tocaram-me como veludo, interpunham uma almofada de ar entre os pomos digitais e a minha cabeça. Rapidamente adormeci. Um pouco depois abri um olho, a conversa animada levou-me a abrir o outro. Relato:

«- Conte-nos lá – um “habitué” sentado desafiava o homem que me aplicava a tesoura – você agora, em vendo o esférico a rodar, não fica com ganas de voltar?

– Não, já fiz tudo o que ansiava no futebol. Proporcionei centenas de golos, vou-lhe ser franco, agora até adormeço a ver, acho uma maçada…

– Cala a boca…- atazanava um terceiro com um sotaque carioca -, você até passou pelo Benfica e pelo Atlético de Madrid…

– Cansei, os dirigentes não dignificam o futebol…

– Pudera, se eras o guarda-redes com os reflexos e os rins mais extraordinários e os frangos mais inexplicáveis…

– Já vos disse, fui para o futebol porque gostava do espectáculo, nunca percebi essa coisa doentia da competição, a ânsia de ganhar…

– Foi o que o impediu de ser rico… – voltava o brazuca.

– Mas eu sou rico, daqui… – e apontava a cabeça.

– Desculpe, interrompi eu, com esses clubes na carteira, qual era o seu problema?

– Gostava de golos bonitos. Bolas chutadas à queima-roupa, que pareciam indefensáveis, apanhava-as todas. Mas as que surgiam na sequência de uma jogada bem desenhada, com princípio meio e fim, quando no seu todo desenhavam uma bela coreografia, como no ballet, punha-me a pensar, “por que não deixar entrar?” Como é que se aborta a beleza?

– Até montaram um restaurante em Madrid com o nome dele, Artur/ O Rei dos Frangos…

– Só a beleza é que interessa. E quando cheguei a Dortmund Spiegel é que vi que tinha razão…

– Nunca ouvi falar dessa equipa…

– Era uma equipa da segunda divisão alemã. Constituída só por jogadores de elite, com uma excelência técnica irrepreensível, só que com o mesmo problema que eu. E aí montámos um sistema de jogo que deixou o treinador à beira de um ataque de nervos.

– Como é que era, conta lá ao teu freguês novo, que ele não vai acreditar…

– Sou todo ouvidos, confirmei.

– Uma vez vi um documentário com o Garrincha que diz tudo sobre o nosso sistema. O Garrincha, num jogo internacional, ultrapassou o guarda-redes mas depois achou que assim o golo era fácil e voltou para trás. Voltou a fintar o guarda-redes e a voltar para trás, só à terceira é que foi de vez. E o realizador passou um grande plano dele e a cara dele era de enfado. O que lhe agradava era a dificuldade. Connosco era o mesmo. Fazíamos dezenas de ocasiões de golo mas muitas vezes falhávamos de propósito porque o que gramávamos era aumentar de tal forma pressão sobre a defesa adversária que o golo acabava por surgir… de auto-golo. Aí sim, gozávamos. Antes não…

– É espantoso… – concordei eu. E você, com o corte e cabelo é o mesmo…

– Vou-lhe ser franco… a melhor prenda que me podia dar este Natal seria cortar o cabelo ao Dhlakama e ao Nyusi (1)… Aí premiavam o meu zelo…

– Por mim, tem um voto… – respondi – mas que é que fazia com figurões?

– Acabava com a guerra…

– Como?

– Juntava a vespa e a abelha na mesma cadeira…e fazia uma extensão do cabelo de um para outro…

– Eh, eh, para passar para um os piolhos do outro?

– Não, piolhos não terão, não os difamemos, mas para eles verem que o tipo de cera que produzem é a mesma… e que quando só se produz cera não há sentido em guerrearmo-nos…

– Não me diga que neste país não se produz mais nada?

– Lembra-se de que a União Soviética quando caiu só tinha duas coisas para exportar: putas e engenheiros nucleares? Com Moçambique é idêntico, só temos para exportar moluenes (2) e ricos… Isch! Como se produzem ricos nesta terra!

– Então e isso não é bom?

– Seria, se com o kit-da-independência viesse um manual a explicar que quem é rico tem de trabalhar e de multiplicar a riqueza, mas os meus bradas (3) acham que ser rico é apenas poder consumir à força toda…

– Eh, pá! Tem razão, Artur!

– Que a minha filha morra de saúde se eu queria ter razão. Mas sabe qual é a desgraça dos povos? Aquilo que eu desejava para os anos vindouros?

– Faça os seus votos, homem!

– Desejava que os povos adquirissem a percepção de que talvez não sejamos tão ricos que possamos continuar a consentir na multiplicação espontânea de ricos que só têm por motivação os gastos… Tudo mudava, tenho a certeza, tenho tanta certeza como a de que Portugal é que vai ganhar o Europeu deste ano…

Eh pá – contrariei eu – já se está a fazer à gorja, ó Artur…

– Estou-lhe a dizer, é sincero…»   

Acordei, a barbearia estava vazia, estávamos a sós, eu e o Artur mais o seu eterno  cigarro ao canto da boca que mantinha o morrão de cinza a prumo, como se fosse bola posta na marca do penalty. O meu cabelo estava impecável, como sempre.

Fechou a loja. A cidade está mais pobre. Quantos “libertadores” deste país aliviaram as tensões na barba e cabelo destes desvelados artistas? A saudade, neste ano que se passou, devia ter o selo Made in Barbearia Universal.

1 .O presidente da Renamo, que move uma guerra contra a Frelimo (o partido no poder), e o presidente de Moçambique. Nyuse na língua maconde, etnia de que é originário, significa “abelha”;

2. Rapaz criado na rua, ao deus-dará;

3. Corruptela de “brother” com que se auto-designam os moçambicanos

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