Entrevista MancheteEntrevista | Documentário “Trilho dos Naturalistas” chega a Macau e a Timor-Leste Andreia Sofia Silva - 5 Dez 20165 Dez 2016 Ainda Portugal era uma monarquia quando a Corte decidiu enviar naturalistas da Universidade de Coimbra até às colónias para recolher a ilustrar exemplares de plantas. Estes percursos estão registados nos quatro documentários do projecto “Trilho dos Naturalistas”, coordenado por António Gouveia, que já pensa num novo plano que retrate a botânica do império português a Oriente [dropcap]A[/dropcap]presentam amanhã o documentário do “Trilho dos Naturalistas” sobre Angola na Casa Garden. Como surgiu a oportunidade de trazer este projecto a Macau? Foi um convite do This Is My City para que viéssemos falar deste projecto e escolhemos um dos documentários. Sou director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra e tudo isto começou com a iniciativa da Ciência Viva, que abriu um concurso para colmatar a falta da ciência nos media. Pediram propostas às universidades com conteúdos científicos e nós apoiamos, com parcerias dos media. Tínhamos uma quantidade de material histórico interessante sobre uma série de expedições que a UC fez ao longo dos séculos. De repente tínhamos material que falava das expedições botânicas para literacia económica e para investigação científica, entre o século XVIII até ao século XX, do que foram as colónias portuguesas. Foi uma iniciativa da coroa portuguesa que mandou vários naturalistas para o Brasil, Angola, Cabo Verde e Moçambique. Em 1783 fizeram-se então as primeiras expedições realizadas de forma mais científica. Decidimos pegar nesse material e ir conhecer os países, pois o material ainda tem importância científica. Muita informação da botânica de países como Angola, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, recolhida ao longo dos séculos, ainda está em Portugal, em armários. É preciso levar a informação para os países de origem? Após a independência esses países passaram por períodos bastante complicados, com a guerra colonial e a guerra civil, e não tiveram tempo para olhar para os seus recursos biológicos. É uma informação de base importante, ainda com algumas lacunas, mas que é necessária para o avanço do conhecimento desses países. Está a ser feito um trabalho de digitalização e a informatização de bases de dados, para fazer com que haja essa transferência de conhecimento. É como se, nessa área, Portugal ainda fosse a metrópole. Historicamente sim, há uma manancial de informação em Lisboa e também em Coimbra, onde se foi acumulando informação por diversas entidades. Em Angola a própria definição actual de parques naturais ainda reflecte o que eram os parques naturais do tempo colonial. Este olhar histórico permite pensar como se fazia ciência e como eram as práticas botânicas no século XIX, em que havia uma série de cientistas a trabalhar nesses territórios e a comunicarem entre si. Temos material de Angola que foi parar a Berlim, Inglaterra, e material a circular. Ao mesmo tempo, com a ida aos países para a realização dos documentários, fomos confrontados com os ecossistemas e as pessoas que vivem nas zonas. Em todo o lado há áreas que estão a ser ameaçadas. Que ecossistemas das antigas colónias estão mais em risco? É muito diferente de país para país. Os ecossistemas costeiros, como o mangal da Taipa, são dos mais frágeis. Moçambique tem uma costa gigante, com mangais, uma zona muito rica onde as pessoas extraem muita madeira, onde há a pesca…em Portugal também há problemas e há que encontrar um equilíbrio para uma utilização sustentável dos recursos entre as populações. Em Angola, com a guerra, há muitas zonas que ficaram abandonadas e com um crescimento quase natural de vegetação, até de recuperação. Os problemas são variados e é preciso exaltar o que é importante. No documentário de Angola conseguimos ir de florestas tropicais de chuva até ao deserto. Foi um processo incrível e tentamos fazer estes quatro filmes misturando a informação histórica, mas depois confrontámo-nos com a realidade actual, e isso ganhou preponderância. O naturalista Joaquim José da Silva esteve em Goa, mas nunca veio até Macau. Não. Nessa altura Macau e Timor estavam sempre um pouco afastados destes percursos. Fizemos estes quatro documentários mas decidimos focar-nos nos países do continente africano, porque tínhamos mais material sobre eles. Macau surge sempre como um interposto para o que nos interessa em Timor. Havia um grande desconhecimento na altura sobre esta zona do mundo? Sim, e ainda há, de certa maneira. Relativamente a Timor ainda há um grande desconhecimento. O grande recurso que interessava economicamente a Timor era o sândalo, e foi bastante explorado. A nossa ideia é vir, séculos depois, trabalhar nesta parte do mundo. Estamos neste momento no processo de pesquisa de mais uma série documental, que inclui Cabo Verde, Macau, Timor, Guiné Bissau e os “arquipélagos do conhecimento” que incluem Goa e o antigo Ceilão (actual Sri Lanka), em que havia essa troca de informações e por onde passaram portugueses. Uma coisa que me interessa muito pegar é no Garcia de Horta, com os colóquios que fez em Goa. De que forma é que surgirá Macau neste novo documentário? No século XIX, até 1896, Timor estava na província de Macau, e todas as ligações passavam por aqui. Em 1880, o jardim botânico da UC e o museu tiveram um director durante 40 anos, Júlio Henriques, que fez essa rede com as antigas colónias. Construiu uma sociedade de naturalistas para a troca de plantas. Em 1879 ele escreve para o Governo de Macau a pedir uma colecção de produtos feitos a partir de plantas. Nessa altura havia o conceito de botânica económica, e de certa forma ainda continua a existir. Tudo tinha um sentido ou uma utilização económica. Sim, no sentido de os produtos vegetais serem transformados e comercializados. Existia na UC a secção de botânica económica, com resinas, placas que mostram como era usada a borracha, fibras de linho. E o que foi enviado de Macau? O Governador na altura deu essa tarefa ao secretário geral do Governo, chamado José Alberto Corte-Real, que reúne essa colecção. Há uma listagem publicada no boletim da província de Macau e de Timor bastante detalhada. Eram quase 600 objectos, e logo na primeira carta ele avisou de que a maioria eram produtos feitos com bambu. Enviou cestos, peneiras, um pequeno cesto para criação de pássaros, balanças para pesar o ópio. Há também muito chá, vários tipos de arroz, tabaco. Envia plantas e alguns animais. Mais tarde, em 1882, decidem ir a Timor. Perceberam que, se não sabiam bem o que havia em Macau, então Timor era um completo desconhecimento. Então José Alberto Corte-Real incumbe outra pessoa de fazer uma recolha e essa informação foi toda para Portugal. É uma colecção muito rica em termos etnográficos, porque todos os objectos têm a ver com a cultura e mostram quais eram os interesses e conhecimentos na altura. Quando vão começar a fazer esses documentários? Neste momento só temos orçamento para a pesquisa. Têm ponderadas parcerias com entidades de Macau? Esperemos que sim, estamos a trabalhar nisso. Vamos passar o documentário na Casa Garden, e penso que para a Fundação Oriente fará sentido (apoiar o projecto). Mas ainda temos de confirmar isso. Estamos no processo de estabelecer ligações. Numa altura em que a China e Macau têm relações mais próximas com Portugal, é importante ter este conhecimento do que existe aqui em termos de botânica. Sim. Macau não nos interessa propriamente do ponto de vista biológico mas também sabemos que já teve vegetação natural. É um tipo de informação histórica que também importa olhar e repensar. O pouco que resta da botânica em Macau está em perigo? É preciso ser estudado? Conheço muito pouco, mas imagino que seja necessário, por ser uma zona com uma grande densidade populacional e com uma grande pressão imobiliária. Tudo o que aqui existe deve ser pouco e deverá ser conhecido. Ainda há um desconhecimento da realidade local e da costa litoral, até da China. antoniogouveia5_hm Há registos históricos de passagens pela China, uma vez que houve vários jesuítas a viajarem para este lado do mundo? Sim. O Manuel Galvão da Silva esteve em Goa, em 1783, até 1787. Mas antes houve um padre jesuíta, João de Loureiro, que foi o primeiro europeu a fazer uma flora, a flora da Cochinchina, actual Vietname, e fez algumas recolhas já no território chinês. Publicou informações, que ainda hoje são uma referência, sobre uma série de plantas do oriente. É a primeira flora do oriente na Europa. Quando partiu, em 1781, parou depois na ilha de Moçambique, onde fez também recolhas botânicas, as primeiras da costa oriental africana, que publica em conjunto com a flora da Cochinchina. Publicou isso na Academia das Ciências, em Lisboa. Durante as invasões francesas em Portugal o General Junot enviou um naturalista, o director do Museu de História Natural de Paris, a dar uma volta pelas colecções portuguesas e a levar o que conseguisse. Então nesse momento essa colecção está em França. A colecção do padre João de Loureiro está toda no Museu de História Natural de Paris. Digitalizaram tudo e todas as plantas recolhidas podem ser vistas online. Portugal despertou tarde para o estudo da botânica do império? Portugal começou a ter essa dinâmica mas nunca foi uma coisa feita de forma sistematizada. A seguir a esse período do século XIX começam as invasões francesas e as guerras liberais. E muito material se perdeu por aí. Sim, e as preocupações não eram científicas. A botânica e o conhecimento botânico das ex-colónias só começaram a ser pensadas a partir de 1870 porque havia de novo alguma estabilidade. Entre o pai da botânica portuguesa, o Avelar Brotero, até ao Júlio Henriques, não há nenhum botânico português que se destaque. Falamos de um interregno de quase 60 anos.