Como tornarmo-nos bestas, Capítulo I

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22/11/2016

a-mae-do-dumbo-1[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á nem os animais são o que são. Aliás nunca foram o que pareciam: as sereias, por exemplo, pelo menos as originais, as gregas, nunca tiveram rabo de pescada. São mais harpias, com toscos troncos de ave e garras. Nunca consegui contar a verdade às minhas filhas.

Em Moçambique, em 2010, uma cabra passou a ser mulher. Na Beira, um camponês encontrou dois matulões a violar-lhe a cabra. Levou-os à polícia, na ponta da espingarda. Aí perguntaram-lhe, Que quer o senhor como compensação? E ele, sisudo, respondeu, Quero que me dêem o lobolo (o dote). A coisa seguiu para tribunal, onde foi objecto de uma encarniçada discussão sobre se seria legítimo conceder-se um lobolo a uma cabra. Estrebucharam as associações ligadas à questão do género, mas o que se pode fazer: é cultura!

Houve outro caso espantoso em 2012, mais para o norte. Um régulo (o chefe da aldeia), falecido há pouco tempo, reencarnou num hipopótamo. Foi um sururu. O hipopótamo passou a ser agraciado com o petisco favorito do régulo: picapau ( um prego trinchado) e uma garrafinha de vinho carrascão. Parece que o bichano levantava uma orelha quando o chamavam pelo nome do régulo. Era encantador. A um tal ponto que o governador da província lhe fez uma visita e um tributo: levou-lhe umas caixas de vinho de boa cepa portuguesa e cem quilos de carne já cortada, para um ano de mantimentos. Respeito é respeito. As crianças descalças da aldeia aplaudiram e o professor, que lhes dá aulas sob uma árvore e sem carteiras, fez uma quadra alusiva. É o que se chama desenvolvimento humano. Eu escrevi no Savana:

«(…) literalmente acredito em tudo. Que a alminha do régulo transborde para o quadrúpede é-me pacifico. Mas o facto de acreditar em tudo, e esta é a diferença, não quer dizer que dê o mesmo valor a tudo. Uma coisa ser plausível não quer dizer que seja necessária. This is the question.

E acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível voltar como físico nuclear, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico.»

Os filósofos falam disto – desta convivência entre o animal e o homem e o que deles há em nós e vice-versa. Derrida dedicou um livro ao assunto. O italiano Agamben não lhe quis ficar atrás. E já antes o Deleuze falava do devir-animal.

(Não sei o que os filósofos escreveriam sobre este assombro, ainda maior: em 2007, a STV – o segundo canal de televisão em Moçambique – fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.

A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, por quê ficar por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro paririam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam. Mas voltemos aos animais.)

Uma prova de que o devir-animal não funciona univocamente, mas sim para os dois lados, encontrei-a em Cabora Bassa, onde encontrei a fotografia que ilustra esta crónica. Ela demonstra que a Natureza via o Disney e que adora o Dumbo. Se me tivessem contado não acreditava, mas parece que Deus brinca mesmo connosco, às paródias.

Paródia e das boas foi o que aconteceu a semana passada, no sul da Líbia. Transcrevo:

“Um incidente envolvendo um macaco foi a causa inicial de um confronto tribal de 4 dias, que deixou pelo menos 16 mortes e 54 pessoas feridas na Líbia, informou no domingo um funcionário da área de saúde local.

De acordo com os moradores e relatos locais de Sabha, no sul do país, o surto de violência começou de modo inusitado, depois de um macaco, pertence a um comerciante da tribo Gaddadfa atacar um grupo de garotas estudantes que passavam pelo local.

O macaco teria puxado o véu islâmico de uma das garotas, fazendo com que os integrantes da tribo Awlad Suleiman matassem, em retaliação, três homens da tribo Gaddadfa, além do macaco – de acordo com um morador local que falou com a Reuters. “Houve um aumento da violência no segundo e no terceiro dias, com uso de tanques, morteiros, e outras armas pesadas”, disse o morador à Reuters, pelo telefone, falando na condição de anonimato por temer pela sua própria integridade física.

Na região de Sabha, uma espécie de ponto de entrada de emigrantes e de armas contrabandeadas no sul da Líbia, geralmente negligenciadas pelo Governo Central, os abusos de grupos de milícias e a deterioração nas condições de vida têm sido especialmente alarmantes.

Gaddadfa e Awla Suleimand representam as maiores e mais poderosas facções armadas da região… etc., etc.”

Pobre do véu, era o único inocente nesta história. Porque a rapariga, tenho a certeza, quando se viu sem véu, nua, gozou![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

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Luis Duarte
Luis Duarte
1 Dez 2016 21:06

Gostei imenso da crónica, claro. E também gostava de, um dia, poder ver-me a reaparecer como ser humano. Pena será, se reaparecer e não tiver consciência do facto!