Marisa Gaspar, antropóloga: “A identidade molda-se às situações”

 

Tropeçou em Macau e nos macaenses por acaso, já lá vão mais de 10 anos. Do acaso ao fascínio, Marisa Gaspar passou para a investigação. A antropóloga apresenta em Janeiro o livro que resulta de uma tese de doutoramento sobre os macaenses, em que explora o conceito de ambivalência: fazer parte de dois mundos não é sinónimo de desconforto

 

“No Tempo do Bambu – Identidade e Ambivalência entre Macaenses”. O livro surge na sequência da tese de doutoramento que fez, mas o contacto com a comunidade macaense não começou com os anos de pesquisa que resultaram nesta obra.

Sim, há mais de uma década que investigo Macau e os macaenses, sobretudo a comunidade que está radicada cá. Isto foi o culminar de uma investigação para um doutoramento. Depois de ter sido defendida em 2013, o passo seguinte seria a publicação, que se concretizou. O livro saiu pela edição do Instituto do Oriente da Universidade de Lisboa.

Como é que surgiu o interesse por Macau e pelos macaenses?

Não tinha qualquer ligação a Macau – agora sim, tenho muitas afectivas – mas, até então, não. Quando fui a primeira vez a Macau fui sozinha, à descoberta, e rapidamente conheci pessoas que foram muito calorosas e que me integraram. O gosto por Macau começou em 2003. Quando terminei a minha licenciatura em Antropologia tive a oportunidade de fazer um estágio profissional no Centro Científico e Cultural de Macau aqui em Lisboa. O centro foi fundado em 1999, precisamente com a preocupação de, uma vez que Macau tinha passado para a China, manter a ligação ao território e ser uma ponte activa nas relações China-Portugal, passando sempre por Macau. Não conhecia o centro e pouco conhecia a história de Macau – como a maior parte dos portugueses, que sabem aquela história romântica de que foi cedido aos portugueses que ficaram lá e defenderam a costa. A Expo 98 também foi importante, porque nos aproximou mais do Oriente, as pessoas tiveram oportunidade de perceber que havia um pavilhão muito interessante, o de Macau. Mas, como referi, pouco sabia de Macau. Foi esse estágio que me permitiu ter mais conhecimento sobre o Oriente e, à medida que ia sabendo mais, ia estudando mais e ficando cada vez mais fascinada. Depois, o facto de ter conhecido Henrique de Senna Fernandes, numa das suas passagens por Lisboa: tive a oportunidade de passar longas tardes com ele à conversa e fiquei completamente fascinada por esta comunidade, por esta terra, quis saber mais e investigar mais. Nunca pensei que teria um projecto destes. Entretanto, a minha vida foi mudando, passei por outros sítios, estive um pouco desligada desta investigação, mas sabia que, no futuro, iria voltar a ela e iria fazer um projecto com mais consistência.

A identidade macaense é um assunto muito polémico, não reúne consenso dentro da própria comunidade macaense – ou nas comunidades macaenses. É neste contexto que surge a ambivalência a que se faz referência no título? A que conclusões chegou?

Em relação às conclusões, tenho de salientar que são sempre as minhas interpretações – há sempre muitas divergências no seio da própria comunidade, é natural que umas se identifiquem mais e outras menos com as observações que faço e com as conclusões a que chego. A ambivalência não diz respeito ao que serão os marcadores identitários da comunidade porque, nesse sentido, não encontro grandes discrepâncias. O meu estudo baseia-se na comunidade, mas não me fixei só em Macau ou só em Portugal. A comunidade é muito dinâmica e funciona sobretudo em rede – o que move a comunidade são redes de pessoas e determinadas pessoas dentro da comunidade. Quando percebi isso, achei que poderia focar-me em redes de pessoas e não tanto nos sítios onde estão fixadas, até porque a comunidade tem muitos fluxos entre Portugal, Macau e a diáspora. Mas o importante é perceber que as pessoas estão constantemente em contacto. O facto de estar cá em Portugal não quer dizer que não saibam exactamente o que se está a passar em Macau, porque as pessoas usam as redes sociais e a Internet como forma de comunicação diária e actualizada. Acredito até que os macaenses em Portugal saibam mais das notícias de Macau e do que se passa com os macaenses em Macau do que propriamente o que está a acontecer aqui no país de acolhimento. Mas o que me interessava perceber era exactamente o que se tinha passado desde 1999 – a grande alteração social, económica e cultural em Macau – e a forma como isso se estava a reproduzir em termos de alterações identitárias na comunidade.

Que alterações identitárias foram essas? Aconteceram?

Sim, essa é a conclusão a que o meu estudo chega. De facto, o que percebi é que há uma mudança de paradigma. Se antes a comunidade macaense se identificava sobretudo com uma cultura e uma identidade lusófona, de matriz portuguesa, neste momento houve uma mudança de paradigma: mais importante do que ter essa matriz portuguesa na sua cultura e na sua identidade é marcar pela diferença, ou seja, ‘eu sou diferente quer do português, quer do chinês, porque sou uma mistura dos dois, sou mestiço, sou filho desta terra, como toda a nossa cultura é um produto dessas misturas, seja na comida, seja na língua que se mistura, somos nós, somos um produto da vivência destes dois mundos que resultou nesta mistura’. Acho que esta identificação começa a acontecer precisamente com a preparação para a transição e sobretudo depois da transição, até porque o discurso formal, oficial e político em Macau é precisamente nesse sentido – marcar pela diferença. Macau é diferente da China, tem uma cultura e uma identidade próprias e é isso que está a ser incutido diariamente. Os macaenses, como filhos da terra que são, têm aqui um papel muito importante – mostrarem ao mundo como duas culturas tão diferentes se misturaram e resultaram nesta comunidade.

Faz referência a uma ambivalência estratégica. Que estratégia é esta?

O que entendo por ambivalência é um conceito mais abstracto que tentei explorar. A sensação que tenho, do trabalho de campo intensivo com os macaenses, é que o facto de terem características de informação e saberem estar em ambos os mundos – de conhecerem a cultura ocidental, portuguesa, assim como têm os requisitos da cultura oriental – faz com que a ambivalência seja usada de forma estratégica, de tirar o maior proveito possível dela. Em situações em que convém ser mais ocidental, são mais ocidentais; quando convém ser mais oriental, são mais orientais. Não estando em nenhum dos dois mundos mas estando no meio deles, a verdade é que sabem estar em ambos. Há esse aproveitamento positivo. A ambivalência pode sempre vista, em termos sociológicos, como o não saber estar ou uma confusão de identificação, mas no caso dos macaenses a ambivalência sempre existiu e foi aproveitada de uma forma muito proveitosa e positiva. Esta ambivalência será também identitária, porque haverá alturas e situações em que se deve, se pode ou é mais proveitoso identificar-se com determinados parâmetros, e noutras com outros. Isto para explicar que a identidade é uma coisa muito fluida, plástica, que se molda às situações, àquilo que os indivíduos querem fazer com ela.

Os macaenses são um caso muito específico, atendendo a que a questão da mestiçagem foi um processo mais claro nas antigas colónias portuguesas, até pelas características políticas. À descolonização corresponderam processos de independência, mas no caso de Macau aconteceu uma transferência de poderes – e não passou a ser dos macaenses, como já não era antes. Coloca uma questão: “Macau, ainda terra minha?”. Que resposta é que se pode dar?

De facto, Macau é incomparável com qualquer uma das ex-colónias portuguesas. Lembro-me perfeitamente de ouvir, nas minhas entrevistas, macaenses dizerem que tinham pisado Portugal pela primeira vez com 18, 20 anos, quando tinham oportunidade de vir estudar. Quando ouvia isto, era já no seguimento de uma longa conversa, e para trás tinha ficado uma paixão à pátria, um amor à terra – uma terra que não conheciam. Deixava-me chocada por perceber que era um amor quase platónico, porque estamos a falar de um país que ficava muito longe e que não conheciam de todo. Nesse sentido, o processo educativo vinha obviamente de uma política de instrução escolar – refiro-me a um grupo numa faixa etária entre os 60 e os 70 anos. Este grupo viveu o Macau antes e o depois da transição – e talvez muito mais o Macau antes, que podia ser o Macau chinês que sempre foi, mas esta comunidade era lusófona. Nesse sentido, havia essa ligação muito forte a Portugal. Com o processo de transferência houve muitas questões delicadas, mas penso que se resolveram pelo melhor e, no geral, as pessoas ficaram satisfeitas. Todas elas me falavam do fantasma do processo de descolonização em África e como isso as tinha, de certa forma, traumatizado, gerando o receio de terem de largar tudo e irem embora. Mas isso não aconteceu, as pessoas foram bem integradas, quem quis vir embora veio, houve muita gente que percebeu que era melhor estar em Macau e regressou. A verdade é que a comunidade é isto: são várias redes de pessoas que têm ligações por laços familiares, mas não só, por laços de afectividade que ficou dos tempos da escola, que se continuam a relacionar e a mover. Estamos a chegar ao próximo Encontro das Comunidades Macaenses e há uma demanda para Macau. Há a necessidade de manter os laços bem activos com Macau e de perceber que ‘a minha terra continua ali e as minhas origens são aquelas’.

Um livro disponível

A obra de Marisa Gaspar é apresentada na Casa de Macau em Lisboa a 19 de Janeiro do próximo ano, mas está já disponível para quem se interessa pelo tema. Existem exemplares impressos que não vão ser comercializados – a edição foi patrocinada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do Governo português – e sim distribuídos pelas bibliotecas da especialidade. Mas existe uma versão de “No Tempo do Bambu” em e-book, que pode ser descarregada gratuitamente no site do Instituto do Oriente do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Em Janeiro, para assinalar a publicação da obra, vai realizar-se um debate que conta com as intervenções do académico Brian O’Neill, autor do prefácio do livro; de Ana Paula Laborinho, presidente do Instituto Camões; e de Fernanda Ilhéu, coordenadora do ChinaLogus – Business Knowledge & Relationship with China, do Centro de Estudos de Gestão da Universidade de Lisboa.

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