Pequim, 11 de Novembro de 1978

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s chineses são mestres no fabrico e manipulação de todo o tipo de materiais. Hoje foi dia de visita a uma das muitas fábricas de artesanato de Pequim, oportunidade para ver e entender como se criam excepcionais peças artísticas. A fábrica, no sul da cidade, é pequena e os artesãos são maioritariamente mulheres, 56% do total. Têm umas mãos a quem os deuses concederam o privilégio de cerzir e lapidar pequenas e grandes maravilhas. Esculpem o jade e o marfim, mas quando não há marfim trabalham o osso de búfalo ou de iaque. Fiquei a saber que o marfim é raro e muito caro, proveniente da Tanzânia custa entre 400 a 500 yuans por quilo.

Mais acessível e capaz de satisfazer qualquer gosto é o cloisonné, típico de Pequim. Trata-se, no essencial, de jarras de cobre e latão cobertas cuidadosamente de esmalte vidrado, de diferentes cores, segundo o desenho saliente de um rendilhado de flores e figuras que é colado na  jarra e depois cheio com o esmalte, utilizando o artífice uma espécie de pipeta. Em seguida, a jarra vai ao forno e no fim é polida. Uma espectacular obra de arte!

Também as mini-pinturas no interior dos pequenos frescos de vidro, teoricamente para guardar rapé, são um hino ao engenho destes artífices que usam um pequeníssimo pincel dobrado introduzido pelo gargalo do frasco e criam paisagens ou desenhos de animais, dragões, temas mitológicos e beldades de espantar.

Os operários, os artesãos têm apenas o 1º. ou o 2º. ciclo de escolaridade. Os veteranos ensinam os mais jovens e os melhores de todos conseguem uma graduação pelo Instituto Central do Artesanato Industrial. O salário mais baixo é 40 yuans, mas os artesãos veteranos podem ganhar 250 yuans por mês. Há uma creche e uma clínica destinada aos artesãos e suas famílias. Tudo muito pobre, mas funcional.

Pequim, 15 de Novembro de 1978

Há dias, aqui em Pequim, dizia-me o Gonçalo César de Sá, jornalista da Anop a trabalhar em Macau, de visita à China: “Hoje convidaram-me a conhecer a redacção e as oficinas do ‘Diário do Povo’ (Renmin Ribao). Quase tudo aquilo me pareceu velho e desactualizado, a precisar de urgente modernização”.

O Gonçalo tinha razão. Não é apenas o maior diário chinês que precisa de se modernizar, é toda a enorme China que, nos últimos anos, por múltiplas e complexas razões, se deixou atrasar e quase ia perdendo o comboio do progresso.

As gentes desta terra parecem voltadas para o futuro e ninguém lhes poderá levar a mal por pretenderam aproveitar e desenvolver as suas enormes potencialidades.

A China é um país rico. Possui jazidas de petróleo, ferro, carvão, estanho, bauxite, ouro, prata, etc. Com uma população laboriosa de quase mil milhões de pessoas consegue, graças aos esforços gigantescos dos seus camponeses, com 1/17 do solo arável existente no globo alimentar  quase 1/5 da população mundial.

Mas a China é também um país pobre. A população é predominantemente camponesa e continua agarrada à terra onde vai buscar o arroz de cada dia; os recursos naturais estão pouco explorados, a indústria é muitas vezes incipiente, faltam técnicos e pessoal especializado, a mão-de-obra  está muito longe de ser plenamente aproveitada, o rendimento per capita é muito baixo.

Após os enormes sobressaltos da Revolução Cultural, a morte em 1976 dos seus três maiores dirigentes, Mao Zedong, Zhu Enlai e Zhu De, a China, agora com Deng Xiaoping, procura a estabilidade e a modernização.

A estabilidade é sempre relativa num país extremamente diversificado, com uma superfície cento e dez maior do que a de Portugal e com as chagas de vários conflitos políticos ainda não cicatrizadas. Mas os chineses procuram uma acalmia na luta política. O fulcro é hoje a modernização da China.

Um dos aspectos que mais seduzia certos ocidentais que visitavam a China nas décadas de cinquenta e sessenta eram encontrarem um povo com as necessidades primárias quase todas resolvidas, a alimentação, a saúde, a habitação, o ensino, mas que permanecia pobre e aparentemente feliz. Ora o mundo evoluiu. Até há poucos anos atrás, era fácil comparar a Nova China com um passado tenebroso de morte e miséria, anterior a  1949 que estava na retina de tanta gente. Hoje, os chineses, sem esquecer esse passado, fazem sobretudo comparações com os países mais avançados do mundo, reconhecem o seu atraso e vêem que têm muita coisa a aprender com o estrangeiro. Recentemente, no Diário do Povo” fazia-se a seguinte pergunta: “Será que é muito revolucionário viajar de mula enquanto no estrangeiro viajam em jactos supersónicos? Será que enquanto os outros usam computadores, nós vamos continuar a utilizar o ábaco”? Havia muito gente na China que defendia um tipo de vida género “pobrezinho mas honesto”. Ora se as pessoas podem deixar de ser pobres – a honestidade é um conceito muito complexo e relativo, sobretudo no mundo chinês —  o que há de mau em procurar viver melhor?

Socialismo não pode ser sinónimo de pobreza. Socialismo não pode ser  continuarem a viver indefinidamente seis pessoas numa única assoalhada, como ainda acontece em muitas grandes cidades da China. Quando existem neste país meios para se construir uma casa decente para toda a gente, como se compreende que situações como esta não caminhem para uma solução?

Há dias, no Congresso dos Sindicatos da China, Ni Zhifu, membro do Burô Político do Comité Central do Partido Comunista da China, disse, tal como vem no boletim diário da agência Xinhua, a Nova China: “Se o socialismo não permite aos trabalhadores uma vida sossegada e feliz através de um considerável desenvolvimento das forças produtivas, mas se significa que o país deve permanecer pobre e que o povo deve ter uma vida muito difícil, que espécie de socialismo é este?”

Para se modernizar, a China está a recorrer à tecnologia e aos empréstimos estrangeiros. Há quem veja associado a isto a importação de ideias do mundo capitalista e o abandono da política de “contar com as próprias forças”. É capaz de ser verdade.

Em finais de 1977, visitei o complexo petroquímico de Pequim que engloba uma cidade com 110 mil habitantes, situada cinquenta quilómetros a sul da capital. Aí funcionam cinco grandes refinarias, uma delas integralmente importada do Japão. É ultramoderna, controlada por computadores e foi instalada em 1975 e 1976. Em dois anos de laboração já produziu quase o suficiente para pagar a sua instalação e continua a refinar petróleo que se destina principalmente ao Japão.

Existe um provérbio chinês que diz: “Nunca nos devemos meter no casulo como o bicho-da-seda”. A China saiu do “casulo” e trabalha para, modernizando-se, garantir a melhoria das condições de vida deste povo que tanto tem sofrido e bem merece uma existência mais feliz.

Pode experimentar-se simpatia, cepticismo ou receio face à China actual, pode concordar-se ou não com o sistema político chinês, mas é preciso estar atento e tentar conhecer o que de facto vai acontecendo cá pelas bandas do Extremo-Oriente. Porque uma China poderosa e moderna pesará como chumbo nos destinos da Humanidade.

Pequim, 25 de Novembro de 1978

O meu filho Sérgio, de três anos, quase só fala chinês, com o sotaque nasalizado e arredondado de Pequim. O português começa a ser para ele uma língua difícil.

Hoje perguntei-lhe:

“Se não falas português, quando chegares a Portugal como vais falar com a avó?”

Resposta imediata:

“A avó fala chinês.”

Aos três anos de idade, pela língua, o entendimento o mundo chinês plasma-se na mente do menino de Lisboa. E não há nada a fazer, para ele é fácil, toda a gente do mundo fala chinês…

Pequim, 7 de Dezembro de 1978

A lanterna do desânimo acende-se por vezes num dos muitos recantos de mim. Ilumina este sentir azedo de quem anda amiúde pontapeando a lua com sapatos de papelão. Sei de coisas grandes que olhos pequenos raramente vêem, de palavras bonitas e acções bem feias, do desaforo de gente mascarada que traz orquídeas nos dedos e cultiva cardos no coração.

Falo cada vez menos. Acentua-se este pendor para uma quase misantopia, não inata, adquirida ao longo dos sinuosos caminhos que conduziram à decepção e à tristeza diante de tanta vilania humana.

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