Adriano Jordão, fundador do FIMM: “É preciso saber levar a chama na vida”

 

O Festival Internacional de Música de Macau tem hoje ao piano, no palco do D. Pedro V, “Reencontros”, com o seu criador. Um festival que nasceu de muita vontade e que por “força do destino” trouxe Audrey Hepburn a Macau, logo na primeira edição. Adriano Jordão recorda como tudo aconteceu

 

Está aqui no trigésimo aniversário do Festival que criou…

Além de o FIMM ter sido uma ideia minha, também toquei no primeiro concerto da primeira edição. Há 30 anos estava a abrir o FIMM e estar aqui agora é uma tremenda emoção.

Como é que tudo começou?

Em primeiro lugar, sempre gostei de fazer muita coisa. Sou formado em Direito, por exemplo, mas sempre me interessei por tudo um pouco e foi aí que apareceu a música. Por outro lado, vir a Macau era um sonho que tinha desde pequeno. Começou com a oferta de umas cabaias muito bonitas que o meu avô materno tinha trazido para Portugal. Depois fui convidado a tocar em Hong Kong e foi nessa viagem que conheci a terra. Desde os primeiros contactos que tive com Macau que sonhava com um lugar mais cosmopolita e moderno, capaz de aliar as suas idiossincrasias históricas e as suas aptidões económicas à civilização cultural, com a componente ocidental que tanto o diferencia. Já na altura e com as características de Macau pensei que existiam duas soluções: que isto pudesse ser Las Vegas ou Mónaco, e eu preferia o Mónaco, claro.

Foi por isso que pensou num Festival Internacional de Música?

Pensei logo que um acontecimento musical de primeiro plano a nível mundial atrairia a Macau a inteligência cultural e embelezaria a sua imagem internacional. Tinha tido uma excelente experiência no Festival Internacional dos Açores e resolvi propor ao então recém-nomeado Governador Pinto Machado a realização deste evento, desafio que aceitou de imediato. Foi um ano de trabalho muito árduo e, quando tudo parecia estar resolvido, alguma coisa emperrava o sistema e recomeçava-se do zero.

Pensou em desistir?

Pensei mesmo que o projecto morria quando o seu primeiro defensor cessou funções. Mas chegou o Eng. Carlos Melancia que acabou por ser um elemento crucial. No entanto, é de notar, as reacções negativas vinham sempre da parte portuguesa e nunca da parte chinesa. Os entraves foram muitos e numa reunião com o Turismo, Costa Nunes sugeriu que o melhor seria ter uma grande estrela de cinema em Macau. Pedi-lhe nomes e ele avançou com o de Andrey Hepburn.

E conseguiu trazer a estrela?

Sim. Com aquelas coincidências estrelares que iluminam as nossas vidas, lembrei-me de ter visto na residência do embaixador da Holanda em Lisboa uma fotografia de Audrey Hepburn. Aproveitando o fuso horário comecei a fazer contactos e liguei para Lisboa. Para minha grande decepção soube que o embaixador tinha abandonado a carreira. No entanto, e face à minha insistência e ao meu desapontamento, a funcionária deu-me um número de Nova Iorque onde o poderia encontrar. Ganhava mais cinco horas de fuso horário. Ao falar com ele, e numa feliz coincidência, a actriz era sua familiar e tinha raízes holandesas.

 Portanto, conseguiu.

Disse-me que Audrey Hepburn falaria comigo mas que me aconselhava a que, além da música, imaginasse uma fórmula que a atraísse, visto estar numa fase em que andava mais preocupada com situações sociais. Lembrei-me da UNICEF. Menti com quantos dentes tinha na boca mas utilizei, na altura, o drama dos refugiados do Vietname e disse à actriz que gostaríamos de a ter em Macau para angariar fundos. Quando lhe perguntei pelo cachê, ela disse que não queria nada porque estaria numa acção de solidariedade. Depois falei com UNICEF que aceitou a minha sugestão. Em consequência disso, a UNICEF acabou por nomear Audrey Hepburn “Embaixadora da Boa Vontade” e deu-lhe uma razão para viver por grandes causas os últimos anos da sua vida. Foi este o primeiro FIMM e foi um sucesso.

Que critérios tinha para as escolhas do festival?

Os que sempre tive: intransigência absoluta ao nível da qualidade, equilíbrio nas presenças chinesa e portuguesa, e a internacionalização do evento.

Quantos anos durou a sua presença no FIMM?

Foram cinco anos e depois segui outros rumos.

Como é que encara as diferenças que nota em Macau, três décadas depois?

Sinto que há aqui um certo mal-estar quanto a esse assunto. Há uma certa inquietação nas pessoas ou dúvida acerca do caminho. Mas o que penso é que a vida não anda para trás, mas sim para a frente. Por vezes este andar é com coisas que não entendemos no momento e que só entenderemos depois. Vou dar-lhe um exemplo: eu, pessoalmente não gosto de ler o jornal num iPad, mas não é um erro existir essa plataforma. Gosto também muito mais de fazer compras na loja da esquina, porque era assim na minha infância, mas não sou contra os actuais centros comerciais, apesar de preferir a intimidade de um mundo que já não existe hoje.

E as mudanças na música?

Também têm sido muitas e o grande problema, hoje, é que as pessoas estão a perder as referências. O nível dos concertos, por exemplo, é muito mais baixo actualmente. Isso acontece porque as pessoas que vão ver o espectáculo estão à espera de ouvir a reprodução do CD que têm em casa e que põe no carro.

Um concerto tem de ser muito mais…

Um concerto é uma criação daquele momento. Se um concerto for feito para ser a reprodução do CD é uma porcaria. E o que temos hoje é a inversão das coisas. Mas não sei se, infelizmente, não estaremos no caminho do fim dos concertos. Para conseguirem vingar, as pessoas começam a fazer concessões até não se sabe onde e a achar que afinal não é assim tão mau. Só esse pensamento já é péssimo. Depois, quanto maior a concessão, menor a qualidade. O problema de hoje, no geral, é que todos optam pelo que é mais fácil.

Porque é que isso está a acontecer?

Esse é o lado perverso contra o qual me revolto e que tem que ver com a tecnologia. Não tenho nada contra e até sou a favor, a minha repulsa é pelo modo como é usada. Somos nós que a temos que dominar e não o contrário. Esse é o grande ponto. E este monstro do computador pensante, que já criámos, vai ser desastroso. Os nossos neurónios, com as ajudas virtuais, começaram a ser muito menos utilizados. Basta recorrermos ao exemplo dos números de telefone. Antigamente todos sabíamos os números de todos e agora ninguém sabe o de ninguém, porque nos apoiamos na lista do telemóvel. O pensamento começou a deixar de ser tão utilizado a partir de Gutenberg. Foi a primeira revolução tecnológica. Não foi o Gutenberg que foi mau; mau foi termos deixado de usar o cérebro. O problema é que depois a preguiça começa a tomar conta de nós. E a memória treina-se e as pessoas já não o estão a fazer. Até na música. A música tem de ser tocada sem partituras. É preciso saber levar a chama na vida. As pessoas têm de saber aquilo por que lutam e ir à procura disso mesmo. Claro que é mais fácil estar no sofá em casa e acender uma chama artificial. Mas o levar a chama na música é fundamental e integra as suas referências.

Quais são essas referências?

Em primeiro lugar, é perceber que na música não há verdade. Por exemplo, das coisas que mais gosto e detesto na vida é integrar um júri internacional. Gosto, porque é muito bom ver e ouvir a música que os jovens andam a tocar, mas detesto porque tenho a certeza absoluta que vou ser sempre injusto. Por exemplo, o mesmo concorrente visto por júris diferentes tem classificações também diferentes. O problema não está no jovem, está no júri, e essa sensação de que a justiça não existe não me é nada agradável.

 Anulavam-se os concursos?

Não, mas sou adepto de que não haveria hierarquização de lugares nos concorrentes vencedores. Elegiam-se três primeiros lugares. Os concursos são importantes porque trazem metas e são motor de trabalho mas deveriam ser feitos de outra forma. Mas, lá está, na música não há verdade.

O que é que podemos esperar do concerto de hoje, deste “Reencontros”?

É isso mesmo. É o meu reencontro com o FIMM. Fui convidado agora pela direcção chinesa do festival, e venho aqui. Continuo a gostar muito de Macau e a ter respeito por esta terra. É por isso que não estou cá com aquela postura saudosista daquele Macauzinho bonito do passado e que está na história. Agora, este mundo é diferente. É nele que estou e é na RAEM que também me reencontro. Temos é de estar abertos para o futuro.

 

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