O “genocídio” linguístico

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todas as “nove horas” em termos protocolares e de entre todas as juras de amor feitas à RAEM, que marcaram a passagem do primeiro-ministro chinês Li Keqiang por Macau, houve uma declaração que me deixou especialmente enternecido: o futuro de Macau são as crianças. Partindo deste ponto, convém referir que a visita do “premier” se inseriu no âmbito de mais um Fórum Macau de cooperação entre a China e os países lusófonos. A cooperação em causa prende-se mais com factores económicos do que propriamente culturais e linguísticos. Fiquei a pensar nas crianças a que Li se referiu e na sua identidade cultural.
Como alguns dos leitores mais atentos (ou os que ainda têm paciência para me aturar) devem saber, fui nestas férias de Verão realizar um sonho antigo: conhecer o Euskadi, ou o País Basco, a comunidade autónoma de Espanha que compreende as províncias de Bizkaia, Alava e Guipozkoa. Historicamente, o Euskadi engloba ainda o antigo reino de Navarra, a região de Baixa Navarra, integrada na actual Comunidade Autónoma com o mesmo nome, e as duas regiões franceses do departamento de Pyrinées Atlantique, Zuberoa e Lapurdi (Soule e Labourd, em francês). Estas sete regiões formam aquilo que os bascos chamam de Euskal Herria, literalmente “País Basco”, e à sua unificação num só país independente deram o nome de “Zazpiak Bat”, ou “sete em um”.
Aquilo que os unia desde o tempo anterior às conquistas romanas era a sua língua, o “euskara”, que tem a particularidade de ser uma das cinco línguas ainda faladas no Velho Continente que não deriva da raiz indo-europeia. Factor agregador, e um dos argumentos usados pelos separatistas para exigir a independência de Castela, o “euskara” chegou a ser proibido pelo General Franco, que considerava o idioma uma “traição à Espanha”. Foi durante o franquismo que a ETA deu início à sua luta armada. Formada por um grupo de intelectuais em Donostia (San Sebastian), esta organização tinha como objectivo inicial preservar a língua e a cultura bascas, mas a opressão levada a cabo pelo “caudillo” levou a que optasse por meios menos ortodoxos e com um considerável apoio do povo basco. Foi já com o evento da democracia que a ETA passou a deixar de fazer sentido e os bascos estão relativamente satisfeitos – ou acomodados – com o elevado grau de autonomia de que usufruem. O meu périplo pela parte do Euskadi que se cingiu à parte espanhola foi elucidativo; sediado em Bilbau, tive a oportunidade de conhecer ainda as províncias de Alava e Guipuzkoa, e esta última demasiado bem, mesmo que acidentalmente, durante uma viagem de mais de duas horas de comboio entre Irun e Eibar.
Depois disso fiz uma paragem de alguns dias em Madrid e, logo à chegada ao aeroporto de Barajas, tive a oportunidade de trocar impressões com o simpático taxista (bastante mesmo) que nos levou até à nossa residência, perto do Palácio Real. Contei-lhe de onde tinha vindo, e de como achei tudo tão diferente de Madrid, ou da noção que os estrangeiros em geral têm da Espanha, mas que “achei estranho que em Bilbau as pessoas não usassem o Euskara entre elas para comunicar”. Foi aí que o prestável motorista me elucidou para o facto de “cerca de 80% dos residentes de Bilbau não serem naturais do País Basco”. Isto foi algo de que me apercebi enquanto lá estive e, mesmo que o meu interlocutor estivesse a exagerar nos números, certamente que a maioria dos bilbaínos não eram originalmente bascos. Isto foi resultado de uma política de incentivo à migração levada a cabo por Madrid, que levou a que afluíssem à capital económica do Euskadi milhares de famílias do resto da Espanha, especialmente da região de Castela e Leão, com mais incidência para a província de Burgos. A seguir disse-me algo que me deixou completamente sem resposta: “Estás a ver… o catalão, por exemplo, é um língua semelhante à nossa” – isto referindo-se a outro grupo independentista espanhol, a Catalunya – “mas o Euskara… se os meninos forem aprendê-lo como primeira língua, terão muita dificuldade em falar correctamente o castelhano. E olha que somos mais de 400 milhões de falantes”.
E não é que o sacana tinha razão? Não pude deixar de estabelecer um paralelo entre o pragmatismo basco, que leva a que os pais prefiram que os seus filhos falem uma língua franca com muito mais penetração à escala global, e a situação de Macau. Não me refiro ao patuá, que durante uma boa parte do século XX foi ostracizado pela administração portuguesa, e hoje é visto como “património imaterial” da região. Nem sequer o português, que talvez pelas mesmas razões que levam os bascos a tomar aquela opção, leva a que muitos falantes do Português em Macau optem por colocar os seus filhos no ensino veicular em língua chinesa. O cantonense, esse sim, é o elo mais forte que confere aos residentes de Macau e Hong Kong, e de um modo mais abrangente de todo o sul da China, uma identidade própria, diferente do resto do país mais populoso do mundo. Em nome do carácter de unicidade de Macau, e já que o resto nos parece dado por perdido, mais cedo ou mais tarde, resta-nos confiar na população de Macau para fazer do cantonense o seu… euskara.

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