Da casa a caminho do tempo

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]osto de casas velhas. Gosto de casas velhas porque nas paredes das casas velhas está a memória do que desconheço. As casas velhas guardam silenciosamente nascimentos e mortes, beijos proibidos e abraços consentidos, jantares de mulheres e homens elegantes, velórios de lágrimas e carpideiras, homens a fumar nos jardins e donzelas perdidas em amores interditos. As casas velhas são o passado das cidades e o passado das pessoas: são o outro tempo colectivo que, nas vinte e quatro horas dos nossos dias, pouco importa.
Gosto ainda de casas velhas por razões de natureza arquitectónica. As casas velhas de que gosto são bonitas, mais bonitas do que a maioria das casas novas. Em Macau, as casas velhas são as mais bonitas de todas, porque são as únicas em que se respira, as únicas com portadas que protegem do calor, as únicas de paredes grossas, capazes de preservarem sussurros. Porque gosto de casas velhas, não gosto de casas a cair de podre.
Pouco tempo depois de ter chegado a Macau, percorria diariamente parte da cidade a pé, logo de madrugada, às vezes ainda de noite. No caminho de casa ao trabalho, passava por duas casas velhas abandonadas, quase mortas. Duas casas velhas fechadas sem pretexto, sem desculpa, sem qualquer justificação. Casas mais bonitas do que todas as outras em redor. Mas fechadas, sem sequer se poder adivinhar a cor do outro lado das paredes.
Uns anos mais tarde, uma das casas foi reconstruída: uma reconstrução mal-amanhada. As portadas de madeira foram substituídas por estruturas de alumínio e o chão, que imagino de madeira nobre, deu lugar a um pavimento em linóleo, uma coisa com um ar barato e vulgar. A casa velha, cor-de-rosa, manteve-se cor-de-rosa, apesar da mudança de tonalidade, e passou a ser o centro de tuberculose da cidade. Ainda hoje é cor-de-rosa, com um aspecto duvidoso.
A outra casa velha do meu caminho diário – a minha favorita – continuou a cair de podre. Durante alguns anos deixei de a ver todos os dias mas, sempre que por ela passava, pensava nas madrugadas, às vezes ainda sem luz, em que matei o tédio dos passos com as histórias que jamais me contaram sobre ela. E o futuro que imaginei que pudesse ter.
Há coisa de um mês, as alterações dos meus percursos diários levaram-me, de novo, a estas duas casas. Na casa velha esquecida, comecei a perceber alguma agitação. Janelas abertas, portas abertas, sinais de uma possível nova vida, que se veio a confirmar: a casa verde está a ser reconstruída e sabe-se já que não vai ter janelas com caixilhos de alumínio.
A casa verde a caminho da Guia é do Governo e vai acolher uma fundação. Não são os planos que tinha para ela, naquelas madrugadas de recém-chegada, ainda a lembrar-me de todas as casas velhas da cidade onde vivia, uma cidade em que o património é tão comum que as pessoas trabalham dentro dele, jantam dentro dele e bebem copos dentro dele – e com ele. A casa verde de Macau vai ter um destino que não é aquele que quero, mas isso não interessa: vai ter um futuro para poder continuar a ser parte de um outro tempo colectivo.
Era isto que gostava que acontecesse com o resto da cidade que está à espera: levante-se a cabeça e veja-se, bem no centro de Macau, a quantidade de edifícios que pedem ajuda, num lamento já muito perto do chão. São prédios sem o interesse da casa verde a caminho da Guia, mas são pedaços de outras vidas, que deviam ser mantidos. E depois temos o antigo tribunal, que não está a cair de podre, mas que corre o risco do desespero de quem espera por aquilo que lhe prometeram, sem que nada aconteça, depressa e bem.
Que não se ausculte mais, que não se esclareça mais. Que se faça: de acordo com as leis, de acordo com o bom senso, de forma transparente, com algum gosto, de preferência muito, sem esquemas que envolvam amigos, tios e padrinhos. Que se faça, já, depressa, antes que o velho morra de inseguro e o outro tempo colectivo, aquele em que raramente pensamos, deixe de ter qualquer significado.

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