Como o génio se derrama

Brun, Jean, O Epicurismo, Edições 70, Lisboa, 1987
Descritores: 132 p.:22 cm, Tradução de Rui Pacheco
Cota: A-4-2-88

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]alvez que pela primeira vez nas minhas fichas de leitura se imponham duas notas biobliográficas embora sumárias, uma para Jean Brun, grande autor francês da Filosofia Antiga e Epicuro, um dos mais geniais autores da Antiguidade, a quem desgraçadamente aconteceu a desdita de ter desaparecido a maior parte da sua obra que já chegou a se avaliada em perto de 300 volumes. E mesmo assim o seu nome, a sua obra e a sua influência pertencem à genealogia maior da História do Pensamento, o que não pode deixar de fazer pensar.
Comecemos por Jean Brun, que nasceu em 1919 e faleceu em 1994, tendo sido professor na Universidade de Dijon entre 1961 e 1986. Dedicou toda a sua vida ao estudo da filosofia antiga e cristã incluindo nesta última as grandes obras de Pascal e Kierkgaard.
Para além dos seus estudos sobre autores e épocas idas, ele dedicou-se também à crítica de uma tendência excessivamente lúdica e hedonista da Modernidade usando para o efeito o pessimismo pascaliano e a sua rejeição estrutural do “Divertissement” por oposição ao “Sérieux”. A obra designou-a por Le Retour de Dionysos. Quanto a Pascal, disse ele: “la postérité n’a pas pu le lui pardonner et s’est débarrassé de lui en en faisant un savant qui aurait malheureusement sombré dans un puritanisme maladif”. Mas o tema deste livro é o epicurismo e sendo assim passo, sem delongas, a Epicuro que terá vivido entre 341 a.C., ano em que nasceu em Samos e 271 ou 270 a.C., ano em que terá falecido em Atenas. É provavelmente o maior vulto da chamada filosofia helenística, portanto pós-socrática e tardia, correspondente à epoca de decadência do Império de Alexandre e da própria ideia e figura da Cidade-Estado. Em Samos foi discípulo do académico Pânfilo, mas a verdade é que não simpatizava muito com a filosofia Socrático-platónica. Foi muito mais sensível ao ensino de Nausífanes de Téos, discípulo de Demócrito de Abdera. Epicuro teria entrado em contacto com a teoria atomista — da qual reformulou alguns pontos. Em 306 a.C. Epicuro fundou a sua própria escola filosófica, chamada O Jardim, onde passou a residir com alguns amigos, na periferia da cidade de Atenas. Aí leccionou até à morte, cercado de amigos e discípulos e tendo a sua vida sido marcada pelo ascetismo, serenidade e doçura.
Para mim é um prazer falar e escrever sobre Epicuro, pela questão de que o facto pode alimentar o justiceiro que há em mim. Se há autor injustiçado na História da Filosofia, esse autor é Epicuro. Em larga medida essa injustiça, que roça a caricatura e a pura imoralidade deve-se ao ambiente moral do designado medioplatonismo, onde na desonesta diatribe se evidenciou Plutarco, publicista e divulgador de largos recursos, mas completamente falhado relativamente ao sábio de Samos. É a Plutarco que parece ter-se ficado a dever a expressão “Os porcos epicuristas”, a partir de uma análise moral que falha de alto a baixo.
Muitas vezes a culpa recai em Marcus Tullius Cícero, o célebre jurisconsulto romano. Ora aí está outra injustiça, esta menor, em cima da injustiça substantiva e relevante. Eu li, senão de fio a pavio, pois seria mais do que presunção minha, pura estultícia, tal a dimensão enciclopédica da obra do Cônsul originário da Gens Túlia, obra onde posso desde já evidenciar, as Tusculanae Quaestiones (Discussões Tusculanas), o De Finibus Bonorum et Malorum (Sobre a Finalidade do Bem e do Mal ou Sobre a Finalidade Moral), o De Natura Deorum (Sobre a Natureza dos Deuses), o Laelius de Amicitia (Lélio sobre a Amizade), e finalmente o De Officiis (Sobre os Deveres). Enumerei estas obras, estes tratados, de facto, pois que as compulsei avidamente numa certa época da minha vida de intenso e, perdoe-se-me a imodéstia, profícuo trabalho intelectual. Mas Cícero tem uma dimensão mítica a que não são alheios dois eventos: primeiro, o facto de que o seu tratado De Officiis ter sido o segundo livro a ser impresso na Europa depois da Bíblia de Gutenberg e, para mim, sobretudo o facto de que Santo Agostinho ter confessado dever-lhe a sua conversão ao Cristianismo a partir da leitura do tratado Hortênsio, sobre filosofia, e que entretanto se perdeu. Em página nenhuma a posição de Cícero sobre Epicuro possui a gravidade de muitas páginas de Plutarco e mesmo de muitos autores da Patrística e da Patrologia Latina.
Mas vamos regresar ao enorme Epicuro, que nos deixou a partir de uma obra escassíssima, pois quase tudo se perdeu, um ensinamento imorredoiro e de uma seriedade intelectual inultrapassável e talvez, no mínimo tanto, uma influência na cultura ocidental só ao alcance dos maiores como Pitágoras, Heráclito, Parménides, Platão, Aristóteles, Séneca, Plotino e Santo Agostinho; e só me refiro aos antigos. Há quem o considere, com a reduzida obra que se salvou, e assim chegou até nós (Carta a Heródoto, Carta a Pítocles, Carta a Meneceu e Máximas Vaticanas).
Aborrece-me um pouco, ter de elencar alguns autores que foram, influenciados decisivamente por ele, pois o excesso de citações, como diz e bem Julio Rámon Ribeyro é próprio de incivilizados. Em minha defesa direi que isto que eu fiz agora é que é citar pois antes limitei-me a referir e é isso que irei fazer a seguir, apenas porque a ignorância hoje em dia é tanta que se o não fizermos, muitas pessoas não chegam squer a fazer ideia daquilo que estamos a pretender. Farão ideia os meus contemporâneos, mesmo universitários e cultos da influência continuada de Epicuro na filosofia ocidental e na cultura em geral? Provavelmente a maioria saberá a influência de Epicuro sobre Gassendi, uma vez que este autor o refere explicitamente na sua obra como é o caso dos Syntagma philosophie Epicuri, cum refutationibus dogmatum quae contra fidem christianam ab eo asserta sunt (Resumo da filosofia de Epicuro, com refutação dos dogmas que fundados nisso são dirigidos contra a fé dos cristãos) e Animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, qui est de vita, moribus placitisque Epicuri (Refutações ao livro décimo de Diógenes Laércio sobre a vida, costumes e preceitos de Epicuro); Mas, ou Gassendi não leu Plutarco ou o anima algum preconceito contra a obra de Diógenes Laércio, pois eu não vi nela uma animadversão assim muito chocante.
Mas a presença de Epicuro aparece em grande força no Medioplatonismo, na Ética Pseudopitagórica, sobretudo em Metopo e Archita, no acervo ecléctico das filosofias da Renascença, mas também em Montaigne, Montesquieu e Rousseau, e com mais força ainda em Hobbes e Locke. Claro que ele aparece ao lado dos estóicos, ou dos académicos ou dos peripatéticos em todos estes lugares e autores que são na sua essência compaginações eclécticas. Porém, para máximo escândalo, ainda aparece no pensamento da igreja onde foi tão denegrido e, se querem saber, até no nosso Joaquim Agostinho de Macedo, que lhe faz um elogio sem reservas nas Cartas filosóficas a Attico, Lisboa: Impressão Régia e em O homem ou os limites da razão: Tentativa filosófica, Lisboa: Impressão Régia, ambas de 1815.
Vamos agora ao sumo. É verdade que Epicuro fala do prazer (hedone), até porque sabia do que falava, já que sofria de gota desde tenra idade e conhecia portanto a incongruência, a brutalidade irracional da dor. Em circunstância nenhuma da sua obra promove o prazer como por exemplo isso é feito na Escola Cirenaica de Aristipo de Cirene. Assim o seu “hedonismo”, e designá-lo mesmo com as aspas é já uma ligeireza e um abuso, não é nunca cinético e muito menos dinâmico. Toda a pragmática do prazer se desenvolve segundo uma lógica da evitação e portanto através de uma atitude negativista. Epicuro sabe que há três tipos de disfunções dolorosas e perturbadoras, a dor física, a dor que resulta do medo da morte e a dor que resulta do medo dos deuses. A sua resposta consiste apenas em aponia e ataraxia. Direi portanto, porque se impõe, que o prazer em Epicuro é catastemático. Ora katastema quer dizer condição, constituição. Sendo assim, o prazer para Epicuro não é um prazer adquirido, mas estático, essencialmente constitutivo, conatural, como se não fosse mais do que a natural e equilibrada saúde física e moral do indivíduo. No fundo, a perspectiva hedonista de Epicuro, tão reprovada pelos seus adversários, não seria mais do que a afirmação da mais ilustrativa norma da paideia grega: alma sã em corpo são. Note-se o que sobre isso disse um dos mais avisados dos seus estudiosos:
“katastematic pleasure differs from Kinetic pleasure in being continuous rather than intermittent. (…) also differs from kinetic pleasure in not having an object. A prominent Epicurean example of a katastematic pleasure is ataraxia, unperturbedness or tranquility, which is a pleasure without an object (…) Another prominent example of a katastematic pleasure in Epicurean literature is aponia, literally the absence of toil and hardship (ponos)” (Peter Preuss, 1994).
Portanto, o prazer em Epicuro é sempre definido pela negativa sob a forma de uma privação: o prazer existe quando o corpo não sofre e a alma não está perturbada.
Não cabe aqui desenvolver os argumentos carreados por Epicuro mas caberá enfatizar o modo de vida proposto por Epicuro para que melhor se possam combater as vicissitudes perturbadoras do mal. Chama-se Lathe Biosas o modo de vida que o sábio de Samos propunha. Lathe Biosas, isto é vida simples, discreta e afastada do bulício das multidões e da ambição, do fragor da luta pela afirmação, enfim numa palavra longe da Ubris. Como também os deuses, segundo Epicuro, depois de terem criado os mundos se afastaram para os espaços intergalácticos onde passaram a viver em total ociosidade e ataraxia, quer dizer imperturbabilidade, costuma considerar-se e bem a filosofia moral de Epicuro uma Imitatio Dei. É no mínimo chocante que a um filósofo como Epicuro alguns autores por pura má fé e sobretudo pelo materialismo gnoseológico epicurista, devido à influência fiel de Leucipo e de Demócrito, tenham produzido as atoardas que produziram, essas sim de verdadeiro mau gosto e miserável valor moral. Epicuro foi para os seus discípulos do Jardim um verdadeiro Deus além de uma asceta de eleição, aquele que dizia que para se ser feliz bastaria viver longe do excesso e reduzir a sua dieta alimentar a pão e a água; aquele afinal que colocava na phronesis, virtude cardeal da cultura grega clássica, a solução para todas as dificuldades existenciais.
Jean Brun faz justiça à grandeza de Epicuro e a sua obra constitui uma boa introdução ao filósofo do Jardim, mas atrevo-me aqui a dizer que a melhor introdução que li ao pensamento de Epicuro seja de Peter Preuss, Epicurean ethics: Katastematic hedonism, Nova Iorque: Edwin Mellen Press, 1994.
Uma nota final à glória de Epicuro e que é também muito esquecida ou simplesmente ignorada do grande público é que, e provavelmente não teria sido por acidente, os maiores poetas da antiguidade ou foram epicuristas ou tiveram epicuristas por mestres. Síron ou Siro, discípulo de Epicuro, foi mestre do grande poeta Virgílio. Lucrécio foi ele mesmo assumidamente epicurista e divulgador, na sua obra, da obra do mestre. Em o De Rerum Natura, dirige-se assim ao grande sábio: “Tu, ornamento do povo grego; primeiro a projectares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas por querer imitar-te com amor e veneração” (De rer. nat. 111,1). Horácio é epicurista em toda a dimensão da sua obra, tanto quanto Lucrécio mas de forma mais subtil e teve igualmente por mestre um discípulo de Epicuro chamado Lúcio Orbílio Pupillo. Também Tibulo cultivou um estilo ligado aos mesmos valores existenciais de Virgílio e sobretudo de Horácio, ao qual não era estranho o culto da vida simples e retirada ligada às virtudes camponesas e rústicas da tradição romana e além disso frequentou o mesmo círculo de intelectuais e artistas do Círculo de Mecenas, onde pontificava Horácio, Virgílio, Ovídio e Propércio. Este último, contudo seria o menos epicurista dos poetas do século de Augusto.
Enfim, para a glória de Epicuro, estes poetas seriam mais que suficientes e entre todos se me permitem o grande Horácio. Deixo-vos com duas elegias dedicadas a esse imortal poeta latino, para que possais ver a sua grandeza e ver até onde o génio de Epicuro se derramou:
Até hoje não senti com nenhum poeta aquele mesmo êxtase artístico que desde a primeira leitura me proporcionou a ode horaciana. O que, aqui se alcançou é algo que, em certos idiomas, nem sequer se pode “desejar” . Esse mosaico de palavras, onde cada uma delas, como sonoridade, como posição, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o conjunto, esse „minimum‟ em extensão e em número de sinais, esse “maximum‟, conseguido desse modo, em energia dos signos – tudo isso é bem romano e, se se me quiser crer, “aristocrático par excellence‟. (Nietzsche)

Quero versos que sejam como jóias
Para que durem no porvir extenso
E os não macule a morte
Que em cada cousa a espreita,
Versos onde se esquece o duro e triste
Lapso curto dos dias e se volve
À antiga liberdade
Que talvez nunca houvemos.
Aqui, nestas amigas sombras postas
Longe, onde menos nos conhece a história
Lembro os que urdem, cuidados,
Seus descuidados versos.
E mais que a todos te lembrando, escrevo
Sob o vedado sol, e, te lembrando,
Bebo, imortal Horácio
Supérfluo, à tua glória…
(Ricardo Reis)

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