“Fogos” de Marguerite Yourcenar

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste é o Verão de todos os calores, de todas as ignições, o Estio abrasador, a chama mais alta que a temperatura ambiente e a combustão de todas as nossas células que tentaram a catarse de um grande encontro no limite das nossas forças. Gosto do Verão! Do extremo calor, da luz que cega, de não ter roupas, de não ter fome, de beber, de cheirar o quente que vem do fundo de um deserto… mas foi este Verão revelador do quanto tudo na Terra se radicaliza de modo a testar capacidades para se habitar ainda nela.
O país ardeu, o país pequeno e esguio com mar por fronteira tem metade da sua área ardida. Nem se devia dizer isto desta maneira dado que nos envergonha a simples noção de o constatarmos. Os meios e os socorros, a planificação e as políticas de ordenamento do território falharam em todas as frentes e, caso não fosse a heroicidade sem tréguas dos bombeiros, creio que tínhamos ardido todos. Foi um “rasgão” no tecido social tão fragilizado por realidades tão danosas e que pôs a descoberto a ineficácia dos sistemas e a inutilidade dos governos. Continuar com esta gente pode-se tornar fatal para cada cidadão, estas políticas binárias, estes imensos desastres financeiros, esta deriva, este aleatório sentido das coisas, que já não é passível de ser mantido, mesmo que nos esqueçamos que muitas das vítimas foram adeptas indefesas da sua própria derrocada. Nas cidades viveu-se o tampão do fumo, a imensa carapaça do ar que trazia o obscuro propósito de nos sufocar – não – não foi preciso terrorismo nenhum: este foi o terrorismo interno que tivemos de enfrentar.
A matéria da combustão é sempre alquímica. O Fogo é um elemento que concentra uma imensa variedade de significados paradoxais e nunca nos deixa indiferentes, nem adormecer face à sua acção física ou emocional. Ele galvaniza tudo, ele amplia, destrói, funde e ajuda os processos a um sucessivo grau de purificação. Daí que a paixão, sendo de elemento fogoso, seja tão importante para curar ou reacender as zonas mortas em nós. Esse processo, creio ser da ordem da saúde pura, do curar as “sarnas” pesadas das doces tendências dos pequenos afectos. E também pode muito bem testemunhar o lado arrasador das cinzas e a temperatura a que ficamos depois de um incêndio. Iremos precisar das Lágrimas, da divina maciez do Dom das Lágrimas e como Fénix renascer daquele impacto tão forte para as nossas naturezas corporais e emocionais. É certo que vamos ardendo, vamo-nos gastando num fogo, ora lento, ora acelerado, mas tudo em nós tende um dia a romper o fio que o liga ao acto animado e, mesmo assim, a morte não existe, porque tudo entra de novo no combusto da tormenta dos materiais. Talvez a alma, que é uma subtileza dada ao corpo, um fio límpido de luz, fogo transmutado, se evole e se vá sem uma só mácula deste local onde encerrada andou norteando as brasas; inspiramo-la ao nascer, expiramo-la na morte.

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«Fogos» é um livro de prosa lírica e novela inspirado no grande rescaldo de uma paixão de Marguerite Yourcenar. Ela vai revisitar as grandes lendas amorosas do passado e o seu profundo e culto sentido do dever de esclarecer levam-na a Aquiles, Fedra, Antígona, Fédon, Safo, Madalena, para nos mostrar da intemporalidade de tal estado e da beleza que pode provocar em quem por maus Fados se foi dela sentido um elemento digno e insuperável perante todas as outras matérias. Começa com « Fedra ou o Desespero» e diz assim: “Fedra tudo consuma. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: tais formas de amor não lhe interessam. Abandona o seu país do mesmo modo que renunciamos aos sonhos; renega a família, tal como vendemos os objectos usados. Naquele meio em que a inocência é um crime.”
Mais para a frente, em «Pátroclo ou o Destino», os amores de Pentesileia e Aquiles são de uma densidade poética que nos arrasa: dois chefes guerreiros possuídos por um ódio inaugural apaixonam-se em pleno campo de batalha, mas são guerreiros, ninguém pode desistir do mérito de encaminhar os seus exércitos para a vitória e, entreligando tempos, a rainha tomba, e Aquiles soluça segurando a cabeça daquela que era digna de ser um amigo. Pois era o único ser do mundo que se assemelhava a Pátroclo: “Aquiles defendia as pedras e o cimento que serviam para construir os túmulos. Quando o incêndio desceu das florestas de Ida e veio até ao porto lamber o ventre dos navios, Aquiles tomou, contra os troncos, os mastros e as velas, o partido do fogo que não teme abraçar os mortos no leito mortal das fogueiras”
“Queimada pelo excesso de fogos… Animal fatigado, um chicote em chamas golpeia-me os rins. Reencontrei o verdadeiro sentido das metáforas dos poetas. Desperto todas as noites no incêndio do meu próprio sangue.”
Toda a fuligem de « Fogos» nos leva longe e nos bascula na ofensa grave dos dias tépidos, todo ele nos traz confessionalmente o tratado de um esforço olímpico da alma e do corpo que carregam belezas tais que só desfazendo-se delas podem continuar a marcha. Quando pensamos na brochura das psicanálises sem verve e consciência, sabemos também por que o talento acabou. O génio da transfiguração! Pois como bem diz Yourcenar “deixar de ser amado é ficar invisível.”
“Fazer versos, digo, acender Fogueiras”, Natália Correia. Talvez haja um lado pirótico nas demonstrações poéticas a que não sejam alheias as noções de calor extremo quando os textos se fazem, e ao fazê-los nos abrasem tanto que se nada fizermos para parar, neles ficamos plasmados como grandes mortalhas incandescentes. Já Deus se insurgia como um Fogo Abrasador!
Em «Antígona ou a escolha» começa com a noção de Nietzsche da hora sem sombra: “que diz o meio-dia profundo? O ódio paira sobre Tebas como um sol terrível.”
Foi desta matéria que os dias de Estio foram feitos tentando olhar também os gatos, quais répteis carnívoros prostrados ao sol abrasador, uma centelha de raios florescentes nas pupilas imóveis… o gozo hermético que este animal nocturno adopta como se um deus egípcio fosse nele Rá e a divindade o próprio disco solar dos seus olhos intactos.
Desce o Verão mansamente e em « Maria Madalena ou a Salvação» começamos a entrar nas frescas feridas que a paixão deixou depois dos estigmas em carne viva. Este pequeno conto apazigua assim a tensão passional atravessada pela genial Yourcenar aos trinta e dois anos.
E o tempo serena enfim, tão cansado quanto renovado de uma qualquer coisa que a mente e os sentidos não saberão jamais explicar. Como é o tempo das coisas vividas, e das coisas fruídas, e de como ele, todo, em trança e laço, é uma equação tamanha que ficamos agora a contemplar.

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