Um cântico agónico e a nostalgia do tempo que passa

Lampedusa, Giuseppe Tomasi di, O Leopardo, Editorial Presença Lisboa,1995.
Descritores: Literatura italiana, Aristocracia, Decadência, Unificação de Itália, Garibaldi, Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo 210 p.:23 cm, ISBN: 972-23-1876-4,
Cota: 821.131.1-31  Lam

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ode-se gostar de um texto, no caso concreto, um texto de ficção por muitos motivos. Eu, em particular, valorizo todas as possibilidades lúdicas ou intelectuais de uma narrativa, a saber a arquitectura, o estilo, a capacidade efabulatória do narrador ou dos narradores, a composição dos personagens, o poder narrativo dos diálogos, a capacidade que um autor pode ter para organizar a intriga e os desenvolvimentos temáticos da história através do dinamismo próprio das múltiplas relações dialógicas dos personagens e finalmente, last but not least os ingredientes formais e puramente estéticos concentrados na palavra e na frase. Não há romances aos quais possamos conceder o estatuto de excelência em todos estes domínios simultaneamente. Há contudo romances que se aproximam deste estatuto e que digamos assim podem ser classificados com distinção em mais de 75 por cento dos itens considerados. Quando isso acontece estamos na presença de uma obra prima e portanto de uma obra de génio. O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa conta-se entre o reduzido número de obras que alcançaram esse estatuto. Como se costuma dizer em gíria, falha apenas o pleno por um pequeníssimo pormenor. Mas acontece que por vezes o que parece apenas um pormenor, revela-se, com o tempo e através de um aprofundamento cada vez mais complexo um pormaior, se me faço entender.
Momentaneamente, mudando de assunto, deixando a questão do pormenor lá mais para o fim, vou escrever sobre este romance como se ainda estivesse no final do século passado, quando depois de o ter lido pela primeira vez, exultava de entusiasmo e me faltavam os adjectivos encomiosos, laudatórios e apologéticos para descrever o que pensava dele.
Para que melhor me compreendam devo dizer que romances assim não são o privilégio de nenhuma tradição em especial, de nenhuma época, de nenhuma literatura nacional particular e também não de nenhum estilo ou mesmo dimensão. Se é verdade que para exemplificar o que disse relativamente à dimensão me apetece imediatamente citar o Guerra e Paz ou a Ana Karenina, de Tolstoi, por motivos óbvios, a verdade é que não é menos justa a referência a um romance moderno de dimensão média como a Conversa na Catedral de Mário Vargas Llosa ou ainda a referência a um texto de dimensão muito reduzida e de uma modernidade fulgurante como é o Pedro Páramo de Juan Rulfo, fundador em larga medida do Realismo Mágico sul americano e na mesma medida precursor de obras primas como os Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato, Todos os Fogos o Fogo de Cortázar, O Paraíso de Lezama Lima, e francamente muitos outros, que se os citasse a todos seria fastidioso. O que pretendo portanto é que não há e nunca haverá uma forma para as obras primas e que não será nunca por aí que lá mais à frente procederei a uma pequena revisão deste Leopardo, que porém e aviso não será minimamente suficiente para o retirar da minha galeria das obras literárias da minha vida.
Voltando aos grandes paradigmas literários, para mim as figuras patriarcais da tradição que referi, a do realismo mágico, serão sempre Jorge Luís Borges e Rulfo, a que já me referi, contudo, Borges eu coloco-o à margem não porque não tenha tido influência, mas porque a sua obra tal como a de Fernando Pessoa constitui toda uma galáxia literária. Mais do que autores eles são, isto é foram, oficiantes litúrgicos do fenómeno literário e criadores de uma mitologia complexa e são, nesse sentido, inclassificáveis. De dimensão maior ou menor, estes autores e estas obras possuem todos os ingredientes que referi acima e em alguns casos nem precisaram de ser essencialmente romancistas.
E agora para que melhor me percebam ainda, atrevo-me a citar alguns grandes romances que não possuem todos os atributos de excelência a que me referi, percebendo-se bem porquê, para quem os leu, claro: Desde logo o Ulisses de James Joyce a que manifestamente falta virtuosismo poético. De uma maneira geral, as grandes obras do chamado fluxo de consciência às quais falta o fulgor dialógico de muitos romances, salvo talvez O Som e a Fúria, embora possam sobrar outros atributos: a capacidade descritiva, os verdadeiros frescos vivos dos lugares e das situações tanto as presentes como as rememoradas, como é o caso, em particular, das novelas de Virgínia Woolf, mas sobretudo a novela Mrs Dalloway ou a novela Até ao Farol. As gigantescas sinfonias que constituem A Morte de Virgílio e Um Homem Sem Qualidades de, respectivamente, Herman Brock e Robert Musil, são exemplos de fantásticos monumentos literários que porém não atingem o patamar da excelência em todos os itens considerados, embora se excedam noutros, em compensação. A Morte de Virgílio é pobre em estruturas dialógicas, O Homem sem Qualidades não se transcende no poder de efabulação. Ambos se concretizam sobretudo na composição social, mental e intelectual de uma época, o que não é pouco, mas não possuem o charme ficcional e efabulatório das obras primas do género e o melhor exemplo será talvez A Montanha Mágica de Thomas Mann.
Se, então, a perfeição não existe, e trata-se de uma opinião subjectiva e muito pessoal, um exercício intelectual interessante, simétrico do discurso elegíaco e laudatório, seria para cada obra verificar não os motivos da sua grandeza e da genialidade do autor, mas os defeitos que impedem que atinja a perfeição absoluta. Vou por isso deter-me agora um pouco nos eventuais defeitos de O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, se é que os tem e eu penso que de facto tem. Devo proceder a uma declaração prévia: a minha formação no domínio da História, sendo este romance histórico em larga medida, assim como as minhas convicções ideológicas no plano sociológico em estreita conexão com a natureza e dinâmica dessas transformações sociais, acrescentada à minha concepção do conceito de época história com as suas variáveis complexas; torna-me particularmente sensível a alguns aspectos idiossincráticos na caracterização das personagens a que o autor não consegue fugir e eu também não. São escrúpulos e preconceitos que se aceitam no autor, mas por maioria de razão já não na análise crítica que naturalmente possui uma distanciação maior e uma perspectiva mais global.
Devo deixar já muito claro que as minhas análises se situam hoje muito longe da vulgata marxista da Luta de Classes e que procuro combinar alguns elementos de ordem marxiana, mínima, com a predominância das perspectivas braudelianas e em particular de um historiador que me marcou muito no plano teórico e que foi Paul Veyne, mas atrevo-me a não deixar de lado o grande teórico dos Testamentos e das Ordens como foi o católico, nem marxista, nem fiel aos Annalles, Roland Mousnier, por exemplo, que eu ainda hoje levo muito a sério. Tudo isto, entre muitos outros, como é natural.
(continua)

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]iuseppe Tomasi di Lampedusa, aristocrata siciliano, veio ao mundo a 23 de Dezembro de 1896 em Palermo, e partiu deste mundo no dia 23 de Julho de 1957. A última cidade onde foi visto foi em Roma, na cidade eterna. Entre as suas obras conta-se o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento. Em boa verdade à parte isso escreveu pequenos ensaios e uma recolha de textos em prosa, sem grande significado. Esta é verdadeiramente a sua obra. Autor de um só livro, apetece dizer, com propriedade. Deste célebre romance ficou a não menos célebre expressão, infinitamente citada e glosada: Algo deve mudar para que tudo continue na mesma, sugerida pelo príncipe de Falconeri, Tancredi, seu sobrinho. Impõem-se duas informações. Em primeiro lugar a ideia de que o leopardo fez parte da fauna selvagem de Itália e foi progressivamente dizimado, até à sua completa extinção, o que faz do título da obra uma parábola da decadência da classe social de que faz parte o protagonista, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. A monarquia e os aristocratas eram partes de uma raça em extinção. A outra informação prende-se com a adaptação da obra ao cinema levada a cabo por Luchino Visconti, com a designação homónima de O Leopardo, e que projectou ainda mais o romance, talvez para um patamar, que apesar da excelência do texto, o romance não mereça.
Em 1959, foi-lhe atribuído o Prémio Strega e, em 1963, como já disse, o romance foi imortalizado no cinema por Luchino Visconti, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale nos principais papéis. Giuseppe Tomasi di Lampedusa, duque de Palma e príncipe de Lampedusa, dedicou-se à escrita apenas nos últimos anos da sua vida, no tranquilo isolamento da sua propriedade, sem contacto com o meio literário. O Leopardo, a sua obra-prima, foi o único romance que escreveu. Inicialmente recusado por duas grandes casas editoriais italianas, viria a ser publicado um ano e meio após a morte de Lampedusa, tendo um sucesso imediato junto do público e da crítica, que o considerou uma das maiores obras literárias do século XX. Traduzido em todas as línguas, O Leopardo é já um clássico incontornável da literatura.

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