Celebrar a Europa

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Celebra-se hoje o dia da Europa. Aquela que ficou para a história como a Declaração Schuman foi proferida pelo então ministro dos negócios estrangeiros francês, a 9 de Maio de 1950. Nessa data, Robert Schuman propôs a criação de uma Europa unida. Então apenas ao nível das indústrias pesadas do carvão e do aço. Sessenta e seis anos depois, a maior parte dos sectores de actividade da Europa são “comuns”.
Na sexta-feira, quando recebeu o prémio Carlos Magno, no Vaticano – uma distinção dada a quem se empenhou no reforço da construção europeia –, o Papa Francisco verbalizou um certo negativismo em relação à construção europeia. Um tom que parece alinhado com outros líderes que não têm “apenas” responsabilidades religiosas. Com a crise financeira a não dar sinais inequívocos de recuperação, com a vaga de migrantes a acentuar brechas entre os Estados-membros, com o terrorismo “made in Europa” a levantar dúvidas sobre o processo de integração de minorias, o discurso negativo sobre o estado actual da Europa é até bastante comum.
O optimista Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, a caminho de Moçambique, não deixou de revelar uma certa preocupação, salientando que “a Europa não está fácil”.
Mas regresse-se ao Papa. A política é feita por sinais, através de gestos ou de discursos. E o Papa, que pela primeira vez aceitou um prémio internacional, fê-lo também, uma vez mais, para chamar a atenção dos líderes europeus para o drama dos refugiados. Líderes como Martin Schulz, Presidente do Parlamento Europeu, Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, Jean Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, ou Angela Merkel, chanceler alemã, estavam presentes nas primeiras filas. Ouviram o Sumo Pontífice perguntar o que é que tem estado a acontecer com a Europa humanista.
O que é facto é que, embora o Papa esteja numa cruzada por uma Europa mais solidária – e sobretudo para que a política de recepção e acolhimento de migrantes seja diferente e mais eficiente do que aquela que os Estados-membros acordaram –, às vezes parece que está apenas a pregar aos peixes. Uma certa Europa, dos nacionalismos, dos extremismos, da fortaleza continental, não parece estar disponível para o ouvir.
É pois fácil fazer o discurso negativo sobre a União Europeia (UE). É simples apontar os inúmeros erros em que caíram os líderes europeus nos últimos anos. O discurso pela positiva é mais difícil. Há dias perguntava-me, à laia de desafio, uma figura com responsabilidades no mundo da investigação em Macau, nas vésperas de fazer uma intervenção sobre a Europa: “O que hei-de dizer de positivo sobre a UE?” Uma certa narrativa construída na esfera pública e reproduzida pela comunicação social, do descalabro actual da União, é tão forte que até alguns académicos, europeístas convictos – habituados a olhar mais para a árvore do que para a floresta – se deixam ficar com dúvidas.
Apesar de todas as críticas, de todas as dificuldades, a UE merece ser enaltecida. E a campanha do referendo sobre a continuidade do Reino Unido na Europa está a revelar-se um excelente fórum – um fórum insuspeito, aliás, dada a natureza do envolvimento britânico na União, sempre com um pé dentro e outro fora, já que se excluiu de Schengen, do euro, da política europeia de asilo – para se escutar o que de positivo tem a Europa.
A União é um espaço de liberdade como há poucos no mundo. E não é apenas um espaço de liberdade de circulação, de pessoas, de bens, de capitais. É um espaço de liberdade de expressão, entre outros direitos humanos. A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras divulgou recentemente o seu relatório anual sobre a liberdade de imprensa. Finlândia e Holanda ocupam os dois primeiros lugares do ranking. Seguidos pela Noruega – que estando fora da EU, acompanha a União em muitas das suas políticas, incluindo Schengen.
É um espaço de tolerância democrática. Em que uma coligação de esquerda radical consegue formar governo na Grécia e a extrema-direita chegar à segunda volta das presidenciais na Áustria. É um espaço de aceitação das diferenças e da diversidade, em que um candidato trabalhista, filho de emigrantes paquistaneses, que professa a religião muçulmana (e cuja mulher aparece em público trajando o véu) consegue ser eleito presidente da autarquia de Londres. Num contexto global em que o silogismo refugiados = muçulmanos = terroristas se transformou numa generalização que dificulta o dia-a-dia de milhões de pessoas, não é pouco.
A UE constitui o maior mercado comum do mundo, com mais de 508 milhões de pessoas. O que propicia oportunidades únicas para empresas, pessoas, para o desenvolvimento pessoal, profissional, técnico. A este nível, os programas Erasmus, de intercâmbio de alunos universitários e de estágios no interior da UE para alunos recém-formados, têm feito mais pela criação de uma identidade europeia do que qualquer campanha de informação pública de larga escala ou disciplinas sobre a construção europeia, quer ao nível do ensino secundário quer universitário.
Os fundos comunitários procederam ao desenvolvimento sem precedentes das regiões mais isoladas da Europa. O investimento em países como a Espanha, Irlanda ou Portugal transformou as infra-estruturas destes Estados – entre outros – de uma forma espectacular.
A integração chega a quase todos os níveis. A partir de Julho, por exemplo, vai ser possível viajar pela Europa e falar ao telefone ou usar a internet sem pagar roaming. “Vem tarde”, dirão os mais cépticos. Mas o que é facto é que a União conseguiu convencer as poderosas operadoras de telecomunicações a abdicarem de uma fonte considerável de rendimentos.
A integração europeia e a suas estruturas de diálogo contribuíram para o maior período de paz na história do continente. E este é uma das valências da construção europeia que não se pode ignorar e explica grande parte da capacidade de atracção do continente.
A política dos “pequenos passos” de Schuman trouxe-nos até aqui. A uma Europa multicultural, mas unida à volta de um conjunto de valores. Não são poucos esses traços comuns. Hoje, como sempre, devem ser assinalados. Contra o pessimismo reinante em época de desafios extraordinários.

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