Welt am Draht (World on a Wire), 1973, Fassbinder.

“(…) o homem é um ser que suporta tão mal a suspeita como o papel de seda a chuva.”
Musil. O Homem sem Qualidades.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]té que ponto o estimado leitor, que manuseia o jornal com tanto carinho, está certo da sua real existência? Certamente seria um choque vir a saber que este, o jornal, não existe verdadeiramente porque não passa de um conjunto de impulsos electrónicos. Ou, não como choque, a suspeita de que este não existe pode transformar a sua visão do mundo à medida que esta se estende para uma desconfiança sobre os que o e o que o rodeia e sobre si próprio.
Stephen Hawking já nos avisou de que poderemos não estar a viver na realidade: how do we know if we are living in our dreams or reality – well, we just don’t and perhaps can’t.
Estas considerações de Hawkins, muito recentes, surgiram a público a propósito da leitura de textos do filósofo chinês antigo Zhuangzi. Depois de um sonho em que se tornara uma borboleta, o pensador sínico perguntou-se se ele seria um homem que sonhou em tornar-se uma borboleta ou uma borboleta que sonhara ser um homem.
Pelo sim pelo não, enquanto não nos chegam certezas, ver uns filmes é uma maneira como outra qualquer do leitor passar o tempo até morrer e ir pensando na sua condição – se é que a morte, ou o próprio leitor, existe verdadeiramente.
Estas linhas servem como aviso. Welt am Draht, de 1973, é um filme de ficção científica de Fassbinder que permaneceu pouco conhecido até há pouco. É um filme feito para televisão, como muitos outros que Fassbinder compôs. Melhor, é uma série de duas partes, uma de apenas duas que ele fez. A outra, de 1972-1973, é Acht Stunden sind kein Tag (Eight Hours are Not a Day), uma série de 8 episódios que se viu cortada para 5 por razões políticas. Ambas foram feitas para a WDR.
É um ponto que por vezes é descurado nas exegeses de Fassbinder, um de que me culpo também. Se bem que Nora Hellmer seja um dos meus filmes preferidos de sempre, nos vários textos que já aqui se fizeram sobre este autor não se tem chamado atenção suficiente para a colaboração intensa que manteve com a televisão. Berlin Alexanderplatz é uma das suas criações mais ambiciosas.
Welt am Draht serve muitos gostos. O de ficção científica; o de filmes em que uma personagem inocente se vê perseguida pela injustiça do mundo; o da revisitação da estética dos anos 70; o de filmes sobre a substituição de humanos por máquinas; o de filmes sobre o imenso poder do dinheiro e das grandes corporações; ou, para quem encontra satisfação nisso, uma série onde se mostra um número elevado de actores alemães famosos da época, uma verdadeira caderneta onde se incluem 3 ou 4 planos com a presença de Werner Schroeter e da sua enigmática musa Magdalena Montezuma.
Também nesta série, onde se coloca a questão da existência do nosso mundo, Fassbinder continua a sua propensão para a utilização de planos com superfícies vidradas e espelhos (em Nora Hellmer esta é quase nauseante, em Effi Briest muito presente) que deformam os rostos ou nos dão a ver apenas a sua imagem reflectida e não o verdadeiro rosto ou corpo. Transformam a nossa percepção não apenas da imagem física mas psicológica das personagens. O espelho é um caminho para a desconfiança e o vidro interposto um caminho para a distorsão (aquários, por exemplo). É fácil de perceber que em Welt am Draht estes sejam um adereço em uso permanente. Christian Braad Thomsen pergunta, no livro Fassbinder The Life and Work of a Provocative Genius, a propósito desta série de sci-fi: “Are we nothing but projections on a screen, produced by a sick society, computer-generated figures which, incapable of reflection, confuse artificial existence with real life?” (pág.28).* O leitor pode neste momento escolher largar o jornal e ir dar um mergulho numa piscina.
Vollmer é um cientista que trabalha num projecto de grande dimensão, o Simulacron, um programa de computador que cria unidades aparentemente humanas (unidades identitárias) num mundo paralelo. Vollmer descobrira algo que ninguém sabia mas antes que o segredo deixasse de o ser morre em circunstâncias pouco claras. Stiller, o seu sucessor – e a personagem central de toda a história, tirada de um livro de ficcção científica americano de Daniel Galouye chamado Simulacron-3 (1964) – assume a sua posição e começa a ganhar as mesmas desconfianças.
As questões filosóficas da interrogação da existência do mundo de Stiller fundem-se com as questões muito actuais dos perigos da criação da inteligência artificial e com as preocupações da utilização comercial por parte de uma grande empresa de um programa cujos frutos deveriam ser apenas científicos. A United Steel, uma companhia de aço, pretende usar o Simulacron para proveito próprio, fazendo projecções sobre o uso do aço no ano 2000. Desta feita a WDR autorizou um texto que se mostra contrário às ambições de uma grande empresa alemã.
Welt am Draht é uma história policial e política. Um jornal investiga as ligações pouco claras dos responsáveis administrativos pelo Simulacron com a United Steel, uma associação a que Stiller se opõe. A primeira parte da série termina com a suspeita de que o seu mundo não passe de um mundo artificial composto por sistemas de simulação electrónicos – incluindo o próprio Stiller, o nosso ponto de contacto narrativo e afectuoso com o mundo.
Há muitos filmes sobre a criação de inteligência artificial e mesmo alguns sobre o desejo de ser verdadeiramente humano, o mais sedutor e mais conhecido dos quais será Blade Runner (1982). É também alemão um dos que primeiro chama a atenção para a ambição e o poder da máquina: Metropolis (Fritz Lang, 1927).
Chamo apenas a atenção para um filme recente que não vi mas que parece reunir vários pontos de interesse estético e filosófico: Ex Machina, de Alex Garland.

* seria interessante saber qual a reacção fílmica de Fassbinder à estupidificante obsessão actual com a constante reprodução fotográfica, a facilidade da sua manipulação e a exposição pessoal através dos novos meios de comunicação.

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