Do verbo amar

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á muitos instantes que podem inspirar para sempre as nossas vidas. Instantes como pactos gravados e por nós sentidos como se fossem presentes, dádivas. Quais altas instâncias que nos devolvem o bem que fizéramos e num relâmpago nos beneficia. Os milagres são acasos muito particulares, sem aviso prévio, nem aparente sentido, mas que na génese têm a sua razão de ser. Ao fazerem-se tais constatações somos nós também que definimos as benesses da mensagem gravada em rito. Nem sempre somos merecedores! A vida ardilosa e plena de trabalho asfixia o bom desenvolvimento de uma visão periférica dando como adquiridas as conclusões benignas. Mas nem tanto! Tudo o que está exposto ao grau da gravidade exulta em nós como queda contínua. Daí o caos permanente, a consequência errática, o labor em círculo, a não aquisição de outros “órgãos” que apenas e ainda nos estão prometidos como potências geradoras de coisas outras.
Serão então tributos? Janelas mais além? Lampejos, cintilações, assombros? Serão talvez lembranças e recados, antevisões, merecimentos? Talvez isso tudo e um pouco mais. Possivelmente uma aritmética composta de subtis harmonias que se revela plataforma de um entendimento maior e nem sempre mesurável com o dom dos sentidos e da razão. Por que há efectivamente muita coisa que não sabemos de nós mesmos, e muitos de nós, gostaríamos para sempre desconhecer. Sabemo-nos falíveis, frágeis, ingratos, soberbos, tristes, incompreendidos, machucados, mas nunca sabemos até onde vai o dom de ser. A opacidade criou no Homem grutas de invisíveis recortes, cavernas de obscuridade, lesões da anima, e a alma não é um levante, trazemo-la até merecermos um sopro de incondicional amor que dentro das batalhas funciona como talismã. Se a Terra é cada vez mais igual, já o Homem é cada vez mais diferente. Muitos vivem no substracto da primeira essência como se de taumaturgos e lapas metabólicas de grandes quaternários se tratasse. Têm ardentes fomes, e desejos tamanhos, que não existe universo que os mantenha saciados. Outros, porém, renunciam, como se tivessem escalado o fardo de uma primeira etapa e fossem por umas escadas, tão altas como as de Jacob, que num sopro sonâmbulo, viu agitarem-se os que iam e os que vinham, numa dança imparável de Eternos Retornos. Outros, ainda, desenvolveram qualidades mediúnicas, outros geométricas, outros fixas, outros móveis. A Terra é regular, ao lado deste filho que não sustém a sua órbita. Uns são areia e magna, outros pedra e diamante, outros doença hereditária, outros, invencíveis.
Mas há de facto os encontros. Encontros raiados de magia, de sagrado, que magicar nunca será o mesmo que consagrar (aqui, as palavras querem dizer coisas e não a mera técnica do exercício da escrita) que de tão preciosos, são remetidos e processados para um local, outro local. Há partes que se procuram como derivas de continentes que se encaixam, formas que se buscam, que têm saudades, nunca se sabendo como defini-las. Um puro momento alquímico pode encarnar naquilo que os olhos serão efectivamente os últimos a ver. Sabemos como os amantes se cansam da vida, a vida nunca é amante, a vida é mordaça, é ferida. Um impulso de rotinas, de grandes ciclos cansados, de partes massacrantes, de zonas viciadas, com tantas fantasias de felicidade quantas as desilusões. A nossa mente construiu o espectro da Felicidade, esse cenário invisível por onde ninguém passa e todos se esforçam por parecer habitá-lo, danificando-nos.
Talvez seja por isso que no puro amor existe a única realidade possível, aquele acontecimento em que forjamos a nossa consciência humana transfigurada. Não é preciso sonhá-lo. Ele, a haver, manifestar-se-á. Também não parece emplumado nem ataviado de coisas, é fresco como as sombras- como a frescura das sombras- melhor dizendo, porque nos é desconhecido e temos de o viver com as túnicas do repouso. Quanto mais elaborada é a mente humana mais amorosa se torna a sua prática, é um tecido alvíssimo composto de um requinte tal, que nenhuma filigrana se lhe iguala. Nos interstícios tem a lucidez da mente e algo de tão perdoável que faz dos amorosos, aqueles grandes seres parados.
Quando estamos perto sentimos-lhe o aroma, a dimensão sagrada, o dom maior, a bonança interna como um lago de luz… sentimos algo que milagrosamente nos harmoniza e orienta deixando para trás o entulho das defesas e o massacre dos sentidos. Estamos num campo abençoado! Manter tal situação como rotina exige entrega, exercício constante e ordem. Encontrar alguém nesta viagem ainda é mais bonito… é como a certeza de que fomos contemplados. Dizia Safo: «Vedado é o choro na casa de um poeta, nunca um tal pesar se apartará de nós». Entrar com botas cardadas nestes antros pode provocar catástrofes naturais, desabamentos de terra, chuvas incontroláveis e mudar alguma coisa no equilíbrio das forças naturais. Os muito amados nem sempre são os mais prováveis, mas, talvez os mais protegidos, os mais férteis em produzir reacções, e se de fora vierem agrestes, o fora que são se transformará na insolvência dos seus dias. Aliás, a Fé e o Amor, são a mesma gema de um Ovo duplo.
Não se deve dar às sensações e aos sentimentos o epíteto de Amor, seria reduzi-lo a uma escala natural. Ora o Amor não é natural dado o seu carácter absolutamente excepcional. Está fora ainda da regra, não sendo contudo um desregramento. É uma simplicidade que enlouquece.
Portugal é um país onde não se sonha, onde o amor é uma caricatura de um gemido fadista, de um passional informe, e onde até a palavra em si se fez tabu. Não sei o que buscam os poetas nem esta literatura descarnada, talvez dizer qualquer coisa que nem eles, nem ninguém entende. É uma vingança apelidar de poetas estes seres, cogumelos, a vingança contra o Poeta. A descrença democrática perante o seu labor, a usura mais ingénua, a indecência mais indecorosa, atacou as suas bases: «Para que serve afinal um poeta em termos de indigência?» já Holderlin perguntava. Eu acho que para nada, mesmo para nada. Mas, há um hiato aberto no tempo: os poetas servem para aperfeiçoar o Amor, não para o descobrirem, porque o Amor não se desoculta, mas pode ser visitado: “o amor que sinto por ti, é uma chama que ilumina a penumbra do que sou; a mão do Amor corrige a natureza”, Elizabeht Browning, in Sonetos Portugueses. São sonetos na bela forma Camoniana que dedicou àquele que viria a ser seu marido o também poeta Robert Browning. E diria mais: “pois que toda a lira, desde que é tocada por mão de mestre, é boa. E ser amada de um grande coração é ter valor.”
Todo o valor do Amor é ser amor, mais nada. E nada o legitima mais que a própria inocência, a sua natureza alada, o seu enlace de matizes, a sua voz que chama e um ouvido atento à sua doce mensagem. Tudo desaparecerá e arrefecerá um dia, menos o amor que num tubo de ensaio irá intacto para o lugar de onde emanou, e aí, todos os nomes dos Amantes serão por fim revelados.
Os amantes são as peças de um corpo incompleto, aqueles que liga a deidade aos canais da existência, nem sempre são as certas todas as formas de amor buscadas, mas são para nós as derivas de uma lembrança. Enquanto ele não chegar, a nossa vida também não nasceu.
Por muitas vidas erraticamente o iremos buscar, até desvivermos nele toda a eternidade merecida. Porque, afinal, ele é merecimento. Conquista da luz sobre a obscura forma aceite, talvez mesmo o que contemplámos no fundo da nossa eternidade.
Para compensar a fome temos a finança, para alargar as vistas os grandes horizontes, para saborear, os repastos, mas para amar não há ninguém. Ninguém que tivéssemos encontrado com esse dom, porque os dons se vão quando deixamos de os contemplar, ou até de acreditar neles.
Creio no “cadáver adiado que procria” no equilibrado sentido das funções e essa certeza não me dá nada. As certezas são as coisas mais terríveis que inventamos. São espectros.
Ninguém procura a morte, dado que nos está ainda reservada como certeza, ninguém ama a certeza. Certos de tantos efeitos, desfazemos longamente os véus destes teares que nos parecem defesas para tanta insatisfação. Porém, e como diria Catarina de Médicis em pleno massacre da Noite de São Bartolomeu, “haverá um dia em que o Homem será amigo de outro Homem.”
Sem dúvida! No tempo do Amor.

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Manuel de Castro
Manuel de Castro
12 Abr 2016 06:00

Não se consegue amar alguém que não se admira nem alguém que não nos faça crescer. Escreve muito bem, é milimétrica, densa. E presumo que estude mitologia.