Quatro ou cinco filmes, dissemelhantes.

[dropcap style=’circle’]N[/dropca]o seguimento da moda britânica do filme de acção com marginais, uma sub-espécie da longa e provinciana tradição realista das ilhas, recomenda-se, com um pequeno frisson mas com um entusiasmo comedido, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Uma história de uma noite apenas, passada no Yorkshire, começada pela fuga de Leila, uma adolescente ajudante de cabeleireiro de origem paquistanesa para junto do namorado Aaron que vive numa roulotte. A perseguição que lhe movem dois grupos, um por dinheiro e o outro por honra, a instâncias do pai, envergonhado perante o comportamento da filha, dura toda a noite e mostra um mundo cinzento e pleno de desajustes sociais.
Outros dois filmes em que este complexo marginal (suburbia/cabeças rapadas/caras de mau) se exibe como pano de fundo, de maneira exemplar mas em modo francês, são Deephan, 2015, de Jacques Audiard e Bande de Filles, 2014, de Céline Sciamma, já aqui suficientemente elogiado noutra edição desta página. 71e551b7a4
Existe já uma estética do filme chinês de actividade mineira. Exemplos são Mangjing/Blind Shaft, de Li Yang, 2003, ou a primeira parte do penúltimo filme de Jia Zhengke, 2013, Tian zu Ding/A Touch of Sin.
Consiste num cortejo já familiar, a inexpressividade dos rostos, masculinos e femininos, dos mineiros, as doenças associadas a esta profissão, os imensos riscos de desabamento, a poluição, a desumanidade, a fealdade dos lugares de extracção e de tudo, a magnitude olímpica da intervenção sobre a terra, etc.
Em Beixi Moshuo/Behemoth, de Zhao Liang, um documentário de 2015 (estreado no Festival de Veneza do mesmo ano e que consta do programa do HKIFF que decorre neste momento*), esta actividade enquadra-se em dois outros complexos: o do contraste que as feridas que a exploração mineira estabelece com a verdejante paisagem original que destrói e o da exploração de uma terra que é ocupada, a da Mongólia Interior – uma troca do verde pelo negro. Este segundo complexo torna muito mais dolorosa a ferida que expõe. As imagens mais dilacerantes são aquelas em que se sobrepõe às estepes do norte a destruição causada pela ganância do invasor. media-title-5831a
O estilo de Zhao Liang é económico, minimalista, documental e artístico. O impacto do filme é muito grande. Este é um filme sobre uma Marca, uma marca indelével sobre o corpo dos mineiros, sobre o corpo social e sobre a paisagem, seguindo um trajecto inspirado na tripartição de A Divina Comédia. O Paraíso, onde chegamos com o homem que carrega consigo um espelho, é uma cidade desumanizada e deserta (penso que a famosa cidade de Ordos), sinal de um futuro disfórico muito próximo.
A mola de L’Enlèvement de Michel Houellebecq, um telefilme de Guillaume Nicloux de 2014, é a sua improbabilidade. A improbabilidade do rapto do divertido autor e dos acontecimentos que se sucedem durante a sua captura. É muito útil por nos dar a conhecer o escritor através de um procedimento inesperado (provavelmente inspirado por um desaparecimento do autor em 2011).
Houellebecq come, fuma, bebe, resmunga, discute e fornica como se tivesse esquecido a sua condição de raptado. Pouco esperada a bonomia com que o escritor francês se deixa levar e o modo como se relaciona com os seus raptores. Inesperadamente leva-nos a lugares e a discussões para que não nos julgávamos convocados. Será que Michel foi raptado em 2011? Ter-se-á divertido?
Uma das marcas mais persistentes do cinema alemão das últimas décadas é o interesse por obras de conteúdo abertamente político. O período da segunda grande guerra, a divisão da Alemanha e o terrorismo urbano fornecem vasto material. A análise política de filmes é um costume próprio à crítica alemã. Sameena-Jabeen-Ahmed-5
Os nomes de Fassbinder, Kluge, Syberberg, Schlöndorff, Schroeter, von Trotta, Sanders-Brahms ou Uli Edel facilmente se associam a este interesse. Favoreço alguns filmes políticos dos anos 60 e 70 em que ao empenho social e político se junta uma marca densa do cinema e da literatura em língua alemã – uma extrema melancolia. Da mistura entre a agressividade e a melancolia dimana uma estética muito particular. Grande favorito é Das zweite Erwachen der Christa Klagers/The second Awakening of Christa Klagers, 1978, de Margarethe von Trotta, ou Nicht Versöhnt oder Es hilft nur Gewalt, wo Gewalt herrscht/Not Reconciled or Only Violence helps Where Violence Rules, 1965, de Straub.
Deutschland im Herbst/Germany in Autumn, de 1978, é um filme colectivo icónico. Inspirado pelos acontecimentos que rodearam o rapto de Hanns-Martin Schleyer pelas R.A.F. (Rote Armee Fraktion), em 1977, é puro cinema político dos anos 70, agressivo e glacial, urgente e com cara de poucos amigos, carregado de um desejo bestial de culpar e de expor, guerrilhamente em cima do acontecimento.
Se aqui me não alargo no seu elogio é porque em breve este poderá incluir-se num texto (outro) sobre Fassbinder (curiosidade: a parte de Rainer Werner, a mais longa e que inclui discussões acaloradas com a mãe e o namorado, foi filmada apenas num fim de semana **).
Vivemos num tempo de reaparecimento de actos de terrorismo. Como tal, alguns filmes desta época têm uma actualidade inesperada.
Na Áustria, que atravessa actualmente um período de vigor (Henckel von Donnersmerck, Haneke e Jessica Hausner, de quem eu gosto tanto), os interesses têm sido outros (nomeadamente, como há pouco aqui foi notado, a propensão para o cinema experimentalista com Peter Kubelka, Kurt Kren ou Peter Tscherkassky). maxresdefault
VALIE EXPORT é um artista feminista austríaca de muitas faces – happening, body art, performance art – influenciada pelo movimento Actionismo de Viena. Algumas das suas atrevidas performances ganharam muitos inimigos.
Mas ela está nesta página a propósito de um filme favorito – Die Praxis der Liebe/The Practice of Love, 1984.
Judith Wiener é uma repórter que denuncia situações de melindre e em Die Praxis der Liebe há uma cor amarelada que é a cor ao mesmo tempo da sedução e da desilusão, uma insistência pastosa que é irresistível. É o apelo do Norte e da solidão mesmo quando, como é o caso de Judith, se tem dois homens, um dos quais traficante de armas.
Mas, sobretudo, passados 30 anos, esta história de VALIE EXPORT ganhou o apelo de um tempo disfarçado, o tempo de uma temperatura aparentemente acolhedora mas, afinal, envolventemente fria, o tempo dos enigmáticos anos 80, da cor macia e ameaçadora, muito voluptuosa, do Betamax e do VHS e do visionamento doméstico em solidão. Entalado entre o desejo da revolução e a posterior apatia, hoje não nos resta senão retirar da década de 80 uma melancolia opressiva e sem contornos bem definidos e uma sensualidade de televisão.

* este filme sincrético, de características documentais e de art-house, Tharlo, um filme tibetano de 2015, ou Jia/The Family, de Shumin Liu, também de 2015, seriam bem vindos, assim como muitos outros documentários que na China foram recentemente banidos, a um local que se está a revelar, como se suspeitava, uma verdadeira desilusão: a Cinemateca Paixão.
** ver o artigo de Dietrich Leder em The Cinema of Germany, 2012, ed. por Joseph Garncarz e Annemone Ligensa, um livro que inclui um conjunto de artigos sobre filmes alemães escolhidos segundo uma perspectiva muito pertinaz: a da sua popularidade à altura da exibição.

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