Rota do prazer

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou editor, não sou escritor, não sou organizador de nada. Nem mesmo da minha vida, que de cada vez que julgo estar a reorganizá-la se desorganiza logo de seguida, por qualquer razão, deixando-me sem jeito.

A confrontação com esta realidade ajuda-me a imaginar, porque não posso fazer mais do que isso, o que será a organização de um festival literário que envolve cerca de seis dezenas de entidades, entre patrocinadores principais e secundários, muitos editores e dezenas de autores que chegam dos cinco continentes, visitas a escolas, momentos e espaços para crianças, jovens e adultos, palestras, conferências, exposições, espectáculos musicais, do fado à ópera chinesa, projecção de filmes, lançamento de livros, reservas em hotéis, serviços de catering, organização de viagens, coordenação de horários, workshops de escrita e leitura, sessões de poesia, acompanhamento de convidados, num conjunto de actividades que se desenrola em múltiplos espaços, com recolha de imagens, e onde tudo acontece em três línguas que nada têm em comum (português, chinês e inglês), havendo por isso mesmo exigências de tradução simultânea para que as iniciativas recolham o interesse do público e não se tornem numa chatice.

Se a tudo isto somarmos o facto de haver público interessado, de várias nacionalidades e de todas as idades, de diariamente se poderem ler entrevistas nos jornais locais com os autores convidados, escutar programas na rádio ou ir acompanhando o que se vai passando pela televisão, vendo-se crianças, jovens, adultos e menos jovens, pais e filhos, ouvindo, debatendo, discutindo, aprendendo em salas cheias, sendo possível encontrá-los em simultâneo nos diversos eventos sem que a idade, a experiência ou o currículo façam alguma diferença, e em que os que gostam de livros se misturam com os que começam a gostar por se sentirem estimulados pelo ambiente para gostarem e apreciarem a leitura e a escrita, poder-se-á ter uma ideia, estando longe, do trabalho envolvido e da importância de uma iniciativa desta natureza numa cidade de 650 mil habitantes.

Existe nisto tudo uma dimensão extraordinária, que vai para lá daquilo que seria a imaginação quando a poucos quilómetros daqui a censura é um dado adquirido, não há liberdade de acesso à Internet, raptam-se editores e livreiros e há quem cumpra pesadas penas pelo simples facto de não pensar de acordo com os cânones oficiais. É verdade que mesmo aqui a democracia não passa de uma miragem, mas ter a possibilidade de ouvir quem vem do outro lado da fronteira discutir abertamente com quem chegou de países livres e de terras de democracia consolidada questões relacionadas com a liberdade de expressão e de edição e com os direitos humanos faz da Rota das Letras um espaço único de intercâmbio de ideias, de reflexão, de crítica e debate.

A cidade abre-se para receber os visitantes, acompanhá-los e aprender com as suas experiências. Torna-se possível falar abertamente com os autores, ouvir o que têm para contar e ensinar, e tudo pode acontecer numa sessão de apresentação de uma obra, num workshop ou partilhando-se uma refeição que a própria organização se encarregou de preparar com inscrições abertas a quem queira participar. E até pode dar-se o caso de se ser apresentado e almoçar ou jantar com autores que nunca se leu e em que a leitura é estimulada por esse encontro. Numa dessas ocasiões, estando eu já sentado com mais alguns convivas numa das mesas de um restaurante por onde a Rota passou, vieram perguntar-me se ali à minha beira se podiam sentar três dos autores. Tive então o gosto de conhecer e trocar impressões com gente de estilos e preocupações muito distintas — um é escritor, tradutor e professor da Universidade Nova, com passagens pelo Massachusetts e Vermont, o outro é especialista em Pessanha e Bocage, escreveu sobre Moraes e Raul Proença, e o terceiro é uma das estrelas da nova literatura do Brasil, vencedor do Prémio Machado de Assis, reconhecido cronista e foi escritor-residente da Universidade da Califórnia (Berkeley) — no que se revelou um momento de excelente convívio que me fez interessar por escritas para mim ainda desconhecidas. Não deixa de ser fascinante poder ler um autor consagrado que não se conhecia depois de se ter tido a sorte de com ele conviver primeiro. Em vez de se ler o livro ou conhecer a obra e só depois, um dia, encontrar o autor, toma-se um outro percurso. O exercício aqui será o de procurar na escrita os traços da pessoa com quem se esteve, de tentar encaixar e reconhecer o homem na sua obra e nas próprias palavras.

Sublinho nestas linhas a Rota das Escolas, parte do programa que passou pela Universidade de Macau, pelo Instituto Politécnico de Macau, pelo Instituto de Formação Turística, pela Universidade de S. José, pela Escola Portuguesa e por outras escolas chinesas e internacionais, pela importância que tem na atracção de gente jovem para a leitura e a escrita. Outros marcos foram o relevo dado à divulgação de literaturas menos conhecidas da região onde Macau se insere e a renovação da aposta na divulgação de autores dos países lusófonos, aliás em linha com o que vinha de trás. A pujança de que a língua portuguesa nesses países dá mostras nos diversos géneros em que se manifesta é garantia da sua continuidade e perenidade nas suas múltiplas expressões, cada vez mais avessas — é a minha convicção pelo que tenho visto e ouvido — a qualquer espartilho ortográfico que force a sua unificação e se sobreponha à liberdade de criação por razões comerciais.

Tenho pena, porque não estava de férias, de não ter estado em todos os lugares em que gostaria. Culpo-me por ter falhado apresentações de livros onde gostaria de ter estado e de não ter ouvido mais autores, consolando-me apenas com o facto de os seus livros por cá ficarem. Entretanto, seria muito importante que a equipa se mantivesse, que a Rota das Letras pudesse continuar a contar com o dinamismo, a experiência e o amor às letras do Ricardo Pinto, do Hélder Beja, do Yao Feng e de toda aquela gente jovem e interessada, entre tradutores e voluntários, que se esforça para que tudo corra bem. E que o festival visse o seu público crescer, penetrando mais fundo na comunidade, se possível em espaços mais amplos e bairros mais recuados, tornando-se num pilar da existência, infelizmente cada vez mais erodida, em especial em matéria linguística, de um segundo sistema na RAEM.

A Rota podia ter durado mais uma semana, talvez mesmo mais duas ou mais três. Mas não. Acabou porque tinha de ser assim. Não houve prolongamento e tornou-se inútil o desempate por grandes penalidades porque já se sabia que seria a equipa dos livros e da leitura a vencedora. O público aplaudiu e anseia por mais. A 5.ª edição da Rota das Letras acabou porque tudo tem o seu tempo e entre duas edições é preciso recomeçar tudo outra vez, fazer de novo para voltar a ser diferente em 2017. Venha então a 6.ª edição, se possível depressa.

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