Património | Associações exigem autonomia na gestão dos templos

O incêndio no templo de A-Má levantou a questão: quem deve gerir os templos espalhados pela cidade? A deputada Kwan Tsui Hang entende que deve ser uma entidade governamental, mas as associações não concordam e defendem a autonomia na sua gestão

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]acau possui 47 templos chineses e todos eles podem ser considerados históricos, por terem sido construídos antes ou depois de 1800, século XIX. Ao longo de décadas, os templos têm sido geridos de forma voluntária pela população, incluindo grupos de moradores ou até famílias, sendo que essa gestão tem sido transmitida de geração em geração. Actualmente cabe a associações de beneficência.
O incêndio ocorrido no templo de A-Má no mês passado trouxe a público a questão da gestão dos templos e a quem cabe a responsabilidade de garantir a sua segurança. Numa interpelação recente, a deputada Kwan Tsui Hang defendia que o Governo deveria elaborar uma lei sobre esta situação, para além de criar uma entidade própria para gerir estes espaços.
Contudo, essa ideia parece não ser aceite pelos responsáveis dos templos com quem o HM falou. Lok Nam Tak, secretário-geral da Associação de Beneficência do templo Tou Tei, localizado na zona do Patane, defende que o Governo deve respeitar a autonomia de cada templo, já que cada um representa parte da história de Macau e é uma forma de unir os moradores. Lok Nam Tak acredita que a intervenção do Governo na gestão dos templos não só vai diminuir o seu valor como vai aumentar a pressão relativamente aos dinheiros públicos a aplicar, problemas que considera serem “desnecessários”.
Lok Nam Tak mostra-se contente com o facto do templo Tou Tei nunca ter tido um incêndio com a mesma dimensão daquele que ocorreu em A-Má, frisando que a associação sempre esteve atenta aos actos de queimar incensos e papéis, bem como a situação do fornecimento de electricidade.

Dúvidas profissionais

Lou Shi Kiang, que gere o templo Hong Kung por adjudicação desde 1999, considera “impossível” a criação de uma única entidade governamental para gerir os templos, já que “cada um é diferente”. O responsável diz ter dúvidas quanto à existência de “verdadeiros profissionais” que compreendam o funcionamento destes espaços ou os seus costumes e religiões.
Ip Tat, presidente da associação que gere o templo Na Tcha há mais de 20 anos, diz que este é um espaço que “gasta mais do que ganha”, situação semelhante a todos os templos de Macau. HM Tou Tei 3
“Os templos não são uma questão de superstição, mas de tradição que nós queremos transmitir às novas gerações. Nenhum membro da associação é pago. Mas se todos os templos forem geridos por um único departamento do Governo, vai haver mais confusão e conflitos. Em nenhum lado do mundo existe uma gestão unificada. O Governo deve apoiar as crenças, mas de forma independente.”
Oi, que trabalha para a Associação do Templo Na Tcha e que é responsável pela gestão diária do templo situado atrás das Ruínas de São Paulo, foi a única pessoa com quem o HM falou que concorda com a ideia da deputada Kwan Tsui Hang. Para ela, a criação de uma entidade pelo Governo poderia significar melhores condições de trabalho, numa altura em que não tem um único dia de descanso.

Aqui não é A-Má – Gestão autónoma feita com poucos fundos

Gerir os templos de forma autónoma nos dias de hoje significar manter crenças e tradições com base em poucos fundos financeiros com recurso ao voluntariado e à boa vontade dos residentes. O lado comercial que se verifica diariamente no templo de A-Má não se verifica na maioria dos templos de Macau, defendem intervenientes.
O templo Tou Tei, na zona do Patane, tem uma história de centenas de anos e é composto por quatro grandes salas, onde se presta o culto aos deuses Tou Tei ou Kun Iam, entre outros. Um assistente, de apelido Kwan, trabalha lá há quatro anos e o seu trabalho consiste em limpar o espaço e mantê-lo. Há três anos começou-se a proibir a queima de incenso e de papéis dentro das salas do templo.
Sem muitos visitantes ou doações, o templo Tou Tei apenas foi alvo de duas renovações desde a transferência de soberania, em 2001 e 2015. Tem sido sempre gerido pelos moradores. Para Lok Nam Tak, este templo não tem uma “natureza comercial”. Sem subsídios do Governo, o responsável garante que as doações não são suficientes, sendo que muitas vezes nem chegam para pagar a Kwan. As rendas recebidas dos imóveis detidos pela associação é que garantem o sustento do templo.
“Todos os meses temos mais despesas do que rendimentos, mas não nos importamos, porque achamos que temos a responsabilidade de preservar aquilo que os nossos antepassados nos deixaram”, referiu Lok Nam Tak. HM Templo Na Tacha
O Templo Hong Kung é gerido, desde 1999, por Lou Shi Kiang e a esposa. A sua propriedade pertence à Associação de Piedade e Beneficência “Hong Kong Mio, sendo que Lou entrega todos os meses um montante à associação. Sem gozar os feriados, todos os dias, Lou Shi Kiang entra no templo às oito da manhã, hora em que começa a arrumar o espaço e os utensílios ligado ao culto.
Os rendimentos do templo Hong Kung dependem também de doações, das vendas de incenso ou papéis. Também este espaço se afasta da imagem de um templo comercial. “Não sugerimos aos visitantes que comprem produtos, tudo depende da sua vontade.”

Sem comércio

Atrás das famosas Ruínas de São Paulo situa-se o templo de Na Tcha. Apesar dos muitos visitantes que encontrámos a um domingo, a maioria não entra. Oi, da Associação do Templo Na Tcha, explica como tudo funciona. “Aqui não somos como o templo de A-Má, que é muito conhecido internacionalmente e para onde os guias levam todos os turistas. Somos um templo pequeno e não temos o lado comercial”, explicou ao HM. O templo de Na Tcha também sobrevive à custa de doações e de vendas de produtos ligados ao culto, sempre com lucros muito baixos.
Ip Tat, presidente da associação, contou que gere o templo Na Tcha há mais de 20 anos, sendo este um espaço que “gasta mais do que ganha”, situação semelhante a todos os templos de Macau.
Outro templo ligado ao culto Na Tcha, localizado na Calçada das Verdades, é gerido por Hou, uma trabalhadora não residente contratada pela Associação de Beneficência do Templo Na Tcha. Hou disse ao HM que no dia-a-dia são poucos os turistas que por ali passam, sendo que moradores acabam por constituir a maior parte dos visitantes.
Cheang Kun Kuong, director da associação, garante que muitas vezes os membros da associação têm de investir dinheiro do seu próprio bolso. “Os templos de Macau têm sido mantidos pela população ao longo do tempo. Não nos importamos de servir o templo porque quando temos saúde, o dinheiro não é nada”, referiu.

IC autorizou obras em 29 espaços em dois anos

Numa resposta enviada ao HM, o Instituto Cultural (IC) defende que os proprietários e gestores dos templos têm a responsabilidade de proteger os espaços classificados pela UNESCO mas que, devido a exigências técnicas, e “de acordo com as necessidades reais”, o IC “ajuda os templos tanto quanto possível nas obras de restauro”.
Em dois anos o IC já deu apoio a obras de restauro em 29 templos, nomeadamente no tratamento e prevenção da formiga branca, garantindo sempre o traço original do templo e das estátuas. O IC diz ainda que colabora anualmente com o Corpo de Bombeiros na promoção de sensibilização para a prevenção contra incêndios nos templos, sendo que todos os anos faz inspecções regulares, registando o estado da manutenção e relembrando aos proprietários e gestores o reforço dos trabalhos de gestão. HM TEmplo Na Tcha
Contudo, Lou Shi Kiang fala de problemas nas reparações, apontando que o IC financia as reparações, mas que devido à Lei de Salvaguarda do Património Cultural “é fácil entrar num dilema”, sobretudo quando é necessário reparar as estátuas dos deuses.
“Se repararmos uma parte do templo mas o IC considerar que está mal feita, podemos ser acusados de destruir o património. Temos pressões quando fazemos as limpezas diárias, porque não há regras que determinem se a destruição aconteceu por acção humana ou de forma natural”, disse o responsável do templo Hong Kung. Lou Shi Kiang diz que não há comunicação entre o Governo e os gestores dos templos.
No caso do templo Na Tcha junto às Ruínas de São Paulo, Oi explicou que o IC já deu instruções para a mudança das mesas e cadeiras, mas a funcionária não concorda, referindo que são “históricos e úteis”. Oi também lança criticas às reparações suportadas pelo Governo.
“Precisamos de reparar a ventoinha há um ano e temos crentes com vontade de nos ajudar, mas o IC não permite. Só que estamos à espera do IC há muito tempo e a ajuda ainda não chegou. Já nos aconteceu um crente querer-nos ajudar a reparar uma porta sem pagarmos, mas o IC acabou por pagar a reparação de dez mil patacas”, rematou.

Crença Tou Tei candidata a protecção da UNESCO

Lok Nam Tak, secretário-geral da Associação de Beneficência do templo Tou Tei, garantiu ao HM que vai apresentar a candidatura da crença de Tou Tei a Património Mundial Imaterial da UNESCO, sendo que os documentos oficiais para o processo deverão ser entregues ao Instituto Cultural “em breve”. Para Lok Nam Tak, a crença Tou Tei está bem preservada em Macau, por comparação a Hong Kong, Taiwan e até interior da China. Isto porque só em Macau se realiza um festival anual.

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