Giulio Acconci | O outro lado do músico surge a cores e tinta-da-china

Todos o conhecemos como uma estrela da Pop, mas ele tem outro lado. O de designer gráfico, cultivado há muitos anos em Itália, e o de quem sofreu uma transformação quando se apaixonou pelas aguarelas. Apanhámos Giulio Acconci a meio do processo de reflexão e soubemos que uma exposição pode estar aí ao virar da esquina. Pelas amostras a que tivemos acesso, tivemos de saber mais

[dropcap]C[/dropcap]omo começou a aventura das aguarelas?
Com um livro de um grande pintor macaense, o Luis Luciano Demée, mostrado pelo meu irmão (Dino). A intensidade da pincelada e a forma como as aguarelas se combinavam, criando outras formas, quase casuais… foi o rastilho. Depois uma conversa sobre caligrafia com a Maggie Chiang, algo que sempre me interessou. Ela é chef e brinca com cores e formas na sua cozinha e trocámos várias ideias. Como ela estava a produzir uns jantares especiais de São Valentim, pensei criar imagens com caligrafia, tinta e aguarelas. Desenvolvi uma série de histórias curtas para cada prato e produzi as imagens em computador – aguarelas digitais, se quiser. Aí pensei que se as fazia assim também teria de conseguir fazer com tinta e pincel.

Em que fase está o processo?
A chegar a uma ideia, a definir o que pretendo dizer. O meu treino de designer obriga-me a fazer esboços como treino. Mas nunca fiz uma composição completa de forma satisfatória e é nisso que estou a trabalhar.

Em termos mais concretos isso quer dizer que…

É um jogo mental. Interrogo-me: ‘vou pintar o que penso, o que sinto, ou as minhas observações do ambiente que me rodeia? Será abstracto, mais ou menos filosófico?…’ Há imensas formas de expressão e é nesse processo que estou. Pode ser sarcástico, político, divertido, fantasioso…

Como está a ser desenvolvido esse processo de pesquisa?
Para tornar as coisas mais simples, estou a transformar isto num trabalho. A tentar retirar-me do processo e, pegando na minha experiência como designer, do trabalho por encomenda. Estou a contratar-me para uma série sobre a Hill Road [em Hong Kong], a área onde vivo. Mas numa forma leve e contemporânea, nada clássica com vários tipos de composição. Associar pequenas histórias a cada imagem também pode ser uma possibilidade.

No que respeita a temas, já existe algo alinhavado?
Hong Kong, para já, é o tema porque é mais simples, é onde vivo. Como tenho dois cães é provável que eles surjam. Um é branco, o outro é preto, por isso dão um interessante conceito yin yang. (risos)

Que imagens sugerem Hong Kong?

Tenho curiosidade em perceber como as coisas se vão desenvolver. Pelo que vejo, as pessoas não andam muito felizes, independentemente do espectro político a que pertençam. Há uma sensação de incerteza no ar e, como em Hong Kong é tudo dinheiro, quando ele não abunda as pessoas não funcionam. De uma forma geral, claro.

giulio acconci Como vê a situação actual da cidade?
Vivemos um período de transição. Por isso, eu e os meus amigos tentamos manter-nos positivos porque tudo acabará por resolver-se. Oiço muita gente, do taxista ao jovem empresário, dizer que não faz tanto dinheiro como antes, que a vida não é tão fácil como antes… De uma forma geral, as pessoas comparam tudo ao ‘antes’. Acho isso negativo. Temos de preocupar-nos mais com o ‘agora’. Claro que existe gente mais pro-activa, cheia de energia e é nessa tendência que pretendo inserir a minha arte e a minha música. As coisas mudam, nunca ficam iguais.

Por falar em música, será de esperar que a próxima vez que ouvirmos falar de Giulio Acconci seja no escaparate de uma galeria e não no poster de um concerto?
É bem possível (muitos risos). Claro que continuo a fazer música mas estou a gostar muito da aventura do artista plástico, produzir pinturas, isso é verdade.

Para quando a “vernissage”?
Quem sabe? Talvez esteja aí mesmo ao virar da esquina.

Como imagina essa exposição?
Gostava de algo simples, sem grandes alaridos. Mas tenho de pensar em muitas coisas, no que quero dizer. Se realmente sair cá para fora como artista, tem mesmo de ser algo para além de dizer que sei pintar. É uma oportunidade como indivíduo, como pessoa, como Giulio Acconci, não como [banda] Soler. Porque, como Soler, as pessoas pensam que sou eu mas não é verdade. É apenas uma personagem criada para aquele efeito. Como pintor torno-me protagonista. Aconteça ou não, o processo mental, a procura de ideias, a pesquisa, as técnicas… ouvir pessoas tem sido uma grande experiência, maravilhoso mesmo.

Telas grandes, pequenas… como vai ser?
Variado. Quando vou a uma exposição gosto de ver um pouco do percurso do artista. Às vezes exibem alguns esquiços, estudos. Eu quero fazer isso, uma pequena secção com esquiços simples. Desses até pinturas grandes.

image4Sabemos que existe um legado artístico na família. Qual a importância dessa influência?
É verdade. O meu pai [Oseo Acconci] foi escultor, estudou Belas Artes, o meu avô era pedreiro e fazia pedras tumulares, está a ver? (risos). Para além disso, o meu pai construía tudo em casa. Das cadeiras, à mesa onde estudava, à mobília de jantar, as nossas camas… vivíamos num prédio que ele construiu… Por isso, a primeira vez que tive de comprar mobília foi um processo estranho (risos). Era também muito vocal em relação a tudo. Sempre a apontar detalhes, a realçar coisas, razões, naquele engraçado sotaque italiano dele. Tanto ele como a minha mãe sempre nos encorajaram a desenhar. Tenho dezenas de blocos de desenho em casa. Um dia, ele levou-nos a uma exposição e perguntou-me se um dia gostava de ter a minha. Disse que sim e ele prometeu-me uma, um dia. Infelizmente faleceu antes do tempo, tinha eu 15 anos. Por isso, se a vier a fazer uma exposição, será dedicada a ele. Como se fosse ele a comissioná-la.

Onde irá acontecer? Em Hong Kong ou em Macau?
Não faço ideia. Apaixono-me por lugares. Gosto do mundo todo. Gosto muito de ir à China (vou muitas vezes a Chengdu), adoro Cantão, Londres e, claro, estarei sempre ligado a Macau. Pelo lado do sentimento terei de dizer Macau mas, se quiser ser prático, vai ser aqui. A verdade é que ainda não sei.

E a cena artística em Macau? Que percepção ressoa do que aqui se passa?
Ainda há pouco, numa conversa com o Fortes [Pakeong] fiquei com a impressão que existe um número de pensadores livres por aí com capacidade para se exprimirem artisticamente, o que me deixa entusiasmado. E noto que se fala muito mais em criatividade. Parece que quase todas as pessoas que encontro falam de ideias, isso faz-me muito feliz. Além disso, posso estar enganado, mas parece-me que estão a começar a aparecer patronos, o que seria muito importante para o desenvolvimento artístico.

E as artes de Hong Kong? Podemos dizer que estão moribundas?
Nada disso. A arte floresce na tristeza, na incerteza, no tumulto. Se andarmos pelos círculos artísticos, descobre-se muita gente discreta. Tenho encontrado muita qualidade, muitas pessoas interessantes. Há mesmo um certo orgulho entre eles e uma geração que se mantém fiel às convicções. É como o surf. Sem ondas não há. No mundo da arte, se estiver sempre tudo bem, vamos falar do quê? Existem, claro, os que produzem arte quando estão felizes, mas o que vejo na história é que as melhores obras nascem do tumulto.

image2Agora vai sobrar para esse lado. Que tumulto é esse que o motiva?
A minha vida toda (gargalhadas). Tem sido uma luta. A questão é se vemos um problema como um bloqueio ou como uma situação a ser resolvida. Nos anos mais recentes tenho tentado uma abordagem mais positiva, mas na maior parte do tempo pensava se estaria no meio de alguma profunda tragédia grega (ri-se mais).

Mas as pessoas olham para si e vêem uma estrela da Pop, vida de glamour, bom aspecto, festas sofisticadas… como pode falar de luta?
Como disse, o Giulio dos Soler é uma personagem, é entretenimento, é o nosso papel. Também é uma protecção, porque se criticarem os Soler não me atingem. Não ando no jogo duro do ‘show off’. A minha realidade é muito diferente. Sou muito “nerd”, gosto de estar em casa, de ver documentários. Estou sempre a tentar aprender, a absorver ideias. E tenho uma rotina saudável. Faço caminhadas regulares com o meu irmão, vamos buscar água à fonte numa zona perto daqui, corro com os cães. As pessoas pensam que passo a vida no ginásio mas não. Também não lhes quero estoirar a bolha. Se ficam contentes com isso, óptimo. Em relação ao glamour, quando alguém pretende entrar nesta indústria digo-lhes sempre a verdade: “No glamour. Nenhum”. (risos)

Mas a exposição vai colocá-lo a nu, ou vai surgir outra personagem?
Eu acredito em Shakespeare quando diz que a vida é um palco onde desempenhamos muitos papéis. Por isso, o mais provável, é sair outro personagem. O verdadeiro Giulio vai continuar muito elusivo e só talvez um dia o partilhe com a pessoa certa. Para já, acho que vai sair o meu lado pintor, outro personagem.

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