Neo-realismo microscópico

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]arlos de Oliveira nasceu no Brasil em Belém do Pará a 10 de agosto de 1921 e faleceu em Lisboa no dia 1 de julho de 1981. Apesar de nascer no Brasil veio com apenas dois anos para Portugal com a família, que se instalou em Cantanhede, perto de Coimbra, onde o pai exercia medicina. A partir de 1933 instala-se em Coimbra a fim de prosseguir os estudos, primeiro secundários e depois superiores, concretamente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se formou em Ciências Histórico-Filosóficas. É em Coimbra que dá os primeiros passos na actividade literária e no comprometimento político, tendo conhecido e feito amizade com membros do grupo neorrealista de Coimbra, Joaquim Namorado, João José Cochofel e Fernando Namora. É assim que publica o primeiro livro de poesia, intitulado “Turismo”, com ilustrações de Fernando Namora e integrado na colecção poética de 10 volumes do “Novo Cancioneiro”, iniciativa colectiva que, em Coimbra, assinalava o advento do movimento neorrealista. Ao formar-se troca Coimbra por Lisboa, vindo com regularidade à Gândara, na zona de Cantanhede. Em 1943 publica o seu primeiro romance, Casa na Duna, segundo volume da colecção dos Novos Prosadores, editado pela Coimbra Editora. No ano de 1944 surge o romance Alcateia, que viria a ser apreendido pelo regime. Participa com regularidade nas revistas Seara Nova e Vértice e em 1953 publica Uma Abelha na Chuva, o seu quarto romance, unanimemente considerado, uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX. Em 1968 publica dois novos livros de poesia, Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem, e colabora na adaptação ao cinema de Uma Abelha na Chuva, filme realizado por Fernando Lopes. Em 1971 sai O Aprendiz de Feiticeiro, conjunto de crónicas e artigos, e Entre Duas Memórias, livro de poemas, com o qual lhe foi atribuído o Prémio da Casa da Imprensa. Finisterra, o seu último romance, sai em 1978, tendo como paisagem de fundo a sua Gândara. A obra proporciona-lhe o Prémio Cidade de Lisboa, no ano seguinte. Devo destacar ainda a publicação de os Pequeno Burgueses.

Neo-realismo microscópico

O romance anda à volta de duas tramas passionais, antagónicas e complementares; A relação entre Álvaro Silvestre e Maria dos Prazeres e entre Jacinto e Clara. As linhas relacionais são de vária ordem, social, mental e histórica que o autor entretece muito bem através do recurso a dois tropos apropriados porque centrados no tempo, a analepse e a prolepse. A mim porém interessa-me mais outra história que não estas de que o romance dá conta. Pessoalmente, interessa-me mais a história intelectual do autor, pois é ela que descodifica os momentos particulares.
Procedo mentalmente à releitura da obra de Carlos de Oliveira, mas agora às avessas. Explico melhor. É através da leitura de Finisterra, último romance do autor, e da paixão intelectual que me suscitou que eu entrei no coração e no cérebro da obra deste muito particular romancista e poeta do neo-realismo português e que portanto encontrei a chave para ir de novo ao encontro dos seus livros mais importantes, como é o caso deste Abelha na Chuva. Portanto em resumo, eu descubro o autor em Finisterra e a partir daí sigo para a compreensão dos primeiros livros, que penso não ter compreendido na altura do meu primeiro contacto.
A chave consistirá no seguinte. Há um título de um livro de poesia de Carlos de Oliveira que me aparece como sendo o núcleo da descoberta. Aliás todos os títulos e subtítulos da poética de Carlos de Oliveira abrem pistas para a compreensão da sua obra romanesca. Agora estou contudo a referir-me ao livro intitulado Micropaisagem. De facto, o prefixo micro do vocábulo é a luz que de repente alumia o caminho. Carlos de Oliveira é um neo-realista microscópico, o que quer dizer que realiza na sua obra o abandono do neo-realismo sem a intenção de o fazer. Carlos de Oliveira é um observador que percebeu que a realidade não se deixa ver à vista desarmada. A partir daí toda a sua panóplia de recursos se centra na análise e dissecação do detalhe, provavelmente como mais nenhum outro autor português. O que acabo de dizer aparece provocatoriamente explícito em Finisterra, logo nas primeiras páginas, perturbadoras diga-se de passagem. Só depois de o ter surpreendido neste livro percebi que afinal isso, a que me refiro, estava disseminado por toda a obra. Quando digo micro estou a subentender a aplicação exaustiva deste conceito a rigorosamente tudo: os cenários (as paisagens), o tempo, as narrativas, as caracterizações das personagens e até as próprias intrigas. É tudo constituído ao microscópio. O autor não gosta de ser enganado pela ilusão das aparências, ou seja pelo que parece e geralmente não é. Uma+Abelha+na++Chuva
O neo-realismo de Carlos de Oliveira deve portanto muito já às hermenêuticas da suspeita e em particular à obra de Claude Lévy Strauss: O conhecimento da realidade só se constrói através do acesso ao que a realidade parece negar ao senso comum. Mas a abordagem do autor da Gândara não se situa no plano de uma artificialidade conceptual, mas antes, permanecendo em solo realista, apertando a malha da rede de observação, até ao limiar do invisível, ou seja do microscópico.
Fazem-me sorrir as interpretações dos romances considerados neo-realistas através da metodologia tradicional do marxismo, inventariando estereótipos sócio-económicos. É o tipo de análise que ultraja a inteligência de Carlos de Oliveira, a finura do seu espírito, que volto a insistir é ainda na poesia que se encontra incandescente. Releiam-se as micropaisagens e sobretudo os poemas de Entre Duas memórias, para se perceber melhor o que digo.
A descodificação imediata dos signos, passando com ligeireza da sua dimensão denotativa para a dimensão conotativa e ideológica só pode provocar um sorriso.
Exemplos retirados a esmo de sítios diversos da crítica:
A tensão entre as personagens exprime a temática geral da opressão.
A abelha simboliza a imperfeição, embora a colmeia seja sempre apresentada como uma organização quase perfeita. Não se percebe como. A antinomia mel/fel por si só também nada explica. A abelha também significa fertilidade e labor. Os signos são todos ambivalentes.
Finalmente a chuva como força destrutiva. Poderá ser, mas também é a chuva que lava e remove os detritos acumulados e protege do perigo das águas estagnadas. Uma boa chuvada lava tudo e tudo remove, tudo leva na enxurrada.
Parece-me a mim que na obra do poeta de Sobre o Lado Esquerdo os signos são de uma outra ordem, quer de grandeza, quer de significação. São a meu ver essencialmente poéticos e testemunhas de uma perspectiva ontológica que justamente não se reduz ao esquematismo da representação social. Uma Abelha na Chuva exprime imediatamente a precaridade existencial, a fragilidade da utopia laboriosa, o império de realidades que não se esgotam nas análises sociológicas, economicistas ou não. Há uma frase de Rosana Cristina Zanelatto Santos que não posso deixar de fazer minha: Tudo o que é real dissolve – se na chuva. Isto a propósito, claro, deste livro.
E cheguei talvez ao ponto mais sensível da minha análise: Logo que um autor de génio aprofunda a descrição, análise e compreensão da realidade, faz estilhaçar imediatamente os quadros mentais da estética neo-realista. Aconteceu assim com Vergílio Ferreira e aconteceu assim também com Carlos de Oliveira. O génio particular deste autor reside no facto de que ao contrário de Vergílio Ferreira ele não abandonou o solo de um realismo radical, e antes pelo contrário aprofundou-o através de uma poderosa lente microscópica, que lhe permitiu ver muito por debaixo da exterioridade das coisas, nos sedimentos subcutâneos ínfimos que sustentam a realidade. A verdade é que é aí nos alicerces dessas colunas que mergulham profundamente o subsolo, que deixam de se ver as formas conjunturais das pertenças sociais e começa a ver-se um pântano difuso e vago onde mergulha a condição humana, mais do que a condição social. É claro que Carlos de Oliveira deixa ver e mostra as duas, a macroscópica digamos assim e a microscópica. Então porque é que esta é mais importante e eu comprometo mais o autor a partir deste objectivo. Por uma razão muito simples, porque esta é que é a marca da sua originalidade. Porque esta é a dimensão que ele inventou. Porque o seu trabalho tanto poético como romanesco se realizou nesta aposta. E não foi fácil, sabe-se, tanto que só se realizou plenamente no seu último romance; ou seja em Finisterra; daí o valor simbólico desse texto notável. Finisterra é o auge de uma poderosa intuição estética que só se concretiza à beira da morte do escritor. Mas antes tarde que nunca. Por vezes é o contrário que acontece, logo na primeira obra o autor concretiza a intuição e o génio. Agora se percebe por que é que eu aconselho a ler o Carlos de Oliveira do fim para o princípio, tanto a poesia como a prosa. Por motivos que não vêm agora ao caso, foi o que aconteceu comigo. O primeiro texto em prosa em que eu descobri Carlos de Oliveira foi em Finisterra e o primeiro livro de poesia foi Entre Duas Memórias. Só depois li ou compreendi, tendo voltado a ler, o resto da sua obra.

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