CA | Organismos públicos gastaram dinheiro e adjudicaram serviços sem autorização

Por comodismo ou por falta de conhecimento, mais de mil serviços de consultadoria foram adjudicados de forma errada por organismos do Governo – e isto apenas em três anos e meio. Um relatório do CA dá conta de dinheiro mal empregue e situações de abuso de competências

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]emasiados estudos e sondagens de opinião. Pagamentos acima do permitido. Dispensas de concurso público que não deveriam ter acontecido. Um relatório do Comissariado de Auditoria (CA) ontem tornado público arrasa diversos organismos do Governo, apontando falhas ao nível da interpretação da lei, que deram origem à adjudicação de projectos sem contratos e sem consultas.
O relatório começa por indicar que, em três anos e meio, 65 serviços públicos adjudicaram 1514 serviços de consultoria, estudos e sondagens de opinião, cujas despesas excederam 1,4 milhões de patacas. Entre os casos apresentados, fica a saber-se que a adjudicação de 280 destes serviços foi “de grande risco” e que 81 revelam mesmo “situações problemáticas”. O Fundo dos Pandas, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT), a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), a Direcção dos Serviços para a Protecção Ambiental (DSPA), a Fundação Macau e a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) estão na lista do CA como os serviços com o pior desempenho. função pública governo
Por exemplo, no caso do Fundo dos Pandas foi ultrapassado – em muito – o limite estabelecido para a autorização de despesas nos anos 2011 e 2012. E isto, com a Fundação a dispensar consultas às entidades competentes e ultrapassando as suas competências, nomeadamente por ter adjudicado por ajuste directo três serviços num total de 795 mil patacas, quando o “limite de competência do Conselho Administrativo do Fundo dos Pandas para autorização de despesas” era de 94 mil patacas.
“O Fundo dos Pandas fez uma errada interpretação das disposições legais respeitantes ao limite da competência para autorização de despesas e à delegação dessas competências”, diz o organismo dirigido por Ho Veng On, que acrescenta ainda que “foi excedido o montante do limite de competência para autorizar despesas”.

Pelos ajustes

A DSSOPT, DSAT e DSPA estão também na lista, por terem adjudicado serviços sem consulta pública – ou, no caso da última, apenas recorrendo a um fornecedor – de valores acima das 750 mil patacas. O problema, contudo, reside no facto “das circunstâncias invocadas e ou fundamentos apresentados não justificarem o recurso ao ajuste directo, nomeadamente no que se refere à conveniência para a RAEM”.
O relatório do CA continua, desta vez apontando baterias à DSAL: o organismo contrata um funcionário aposentado em regime de aquisição de serviços, mas o que era para ser um contrato de seis meses, passou a ser de dez anos. “Foram sendo celebrados novos contratos por iguais períodos de tempo, embora com um intervalo de dois a cinco dias entre cada contrato.” O mesmo fez a DSPA, com um consultor, que ficou cinco anos nestes termos.
“Os referidos serviços públicos não observaram o regime jurídico adequado à natureza das actividades em causa – funções exercidas sob dependência do empregador ou exercidas de forma autónoma”, ressalva o CA.
Segue-se a Fundação Macau, organismo especialmente reconhecido pela atribuição de subsídios, que decidiu celebrar 18 contratos “através de documento particular” entre as partes, ao invés de assinar contratos. Além disso, sete deles foram adjudicados por menos de meio milhão de patacas, mas “com prazos de prestação superiores a seis meses, quando é legalmente exigível a celebração de contrato escrito para as aquisições de serviços com prazo de entrega ou execução superior a seis meses”. O CA aponta, mais uma vez, “errada interpretação” das leis, mas o que é facto é que a Fundação também atribuiu 11 projectos que valiam mais de meio milhão de patacas sem um contrato por “razões de urgência”.

Empresas sortudas

Nas quase cem páginas do relatório a DSPA é outra vez criticada, desta vez por causa das cinzas volantes de Ká Hó o organismo adjudicou a uma empresa o serviço de avaliação da qualidade ambiental da vila, em Coloane. Tudo sem concurso público, sem consulta e sem contrato.
“Invocou a qualificação profissional e vasta experiência [da empresa]. O prazo de prestação decorreu entre 14 e 21 de Dezembro de 2010 e, posteriormente, foram feitas à mesma empresa 23 novas adjudicações de serviços de monitorização da qualidade do ar no aterro de cinzas volantes de Ka Hó e zonas circundantes, para o período de Dezembro de 2010 a Junho de 2013, no valor total de 37,2 milhões de patacas, tendo-se verificado que não foram observados os procedimentos legais previstos no regime de aquisição de serviços, o que impediu o Governo da RAEM não só de se inteirar dos preços praticados no mercado como da consequente possibilidade de negociação”, frisa o CA.
A DSAT fez igual, mas com a Política Geral de Transportes Públicos. Depois de ter criado um grupo de trabalho para o estudo do trânsito de Macau – que consultou duas empresas para a elaboração desta política -, a DSAT decidiu adjudicar directamente a uma terceira empresa o trabalho. O CA não sabe porquê. “Não foram disponibilizados ao CA os elementos que teriam servido de suporte aos procedimentos adoptados, uma vez que apenas lhe foi facultado o extracto de uma acta de reunião sem a assinatura dos participantes. O respectivo procedimento põe em causa o princípio da igualdade de tratamento e de imparcialidade entre os participantes e revela falta de transparência nas aquisições por parte das entidades públicas”, escreve o organismo de Ho Veng Hon.
Dentro da DSAT, apontar de dedos também para a Divisão de Relações Públicas e para a Divisão de Planeamento de Tráfego, que “adjudicaram dois projectos de inquérito ao número de lugares de estacionamento em Macau” – isto depois de um inquérito semelhante já ter sido feito. Mais uma vez, a culpa é da DSAT. “Não sendo necessários dois inquéritos, a sua realização ocasionou um eventual desperdício dos dinheiros públicos e falta de ponderação, por parte do serviço público, quanto à eficácia das despesas antes da sua autorização.”
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Nada meigo

O Comissariado de Ho Veng On admite que os resultados desta auditoria – que foi feita apenas com informações até 2013 – mostram que os serviços públicos “não possuem o conhecimento necessário dos principais diplomas legais que regulam a aquisição de bens e serviços”, motivo pelo qual estes não se cumprem ou não se aplicam de forma correcta. O organismo aponta mesmo que os serviços “fazem uso abusivo da dispensa de procedimentos legais”, sem sequer prestarem atenção tanto à lei, como “aos interesses do Governo”. O motivo? “Por mera conveniência, nomeadamente a relacionada com a morosidade do processo normal”, diz o CA.
O organismo remata dizendo que os funcionários públicos têm de conhecer a lei – de forma “obrigatória” – e que a falta de conhecimento não pode ser uma justificação.
“Não podem alegar que a sua gestão deficiente e ou falta de capacidade de execução se devem a um regime legal desadequado, a procedimentos complexos e morosos ou a técnicas avançadas”, termina.

O que dizem os visados

“Os comentários apresentados pelo Comissariado da Auditoria irão servir como indicadores, garantindo a execução das despesas em conformidade com a legislação”
Fundo dos Pandas

“Concorda e aceita o parecer, podendo pelo mecanismo de consulta, conhecer os fornecedores existentes no mercado, nomeadamente a sua capacidade profissional e as novas técnicas, reduzindo-se, assim, o risco da ocorrência de problemas resultantes da adjudicação directa a um fornecedor, apenas com fundamento na sua experiência. Irá observar futuramente os procedimentos do concurso público ou da consulta de preços para estudo de outros projectos sem carácter de urgência ou de especialidade. 90d86e89dbac14053f4be6f867e05c7e3a1b8
Quanto aos estudos de carácter urgente ou específicos recorrerá ao procedimento de ajuste directo, fundamentando a conveniência para a RAEM”
Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes

“Concorda, basicamente, com o conteúdo do relatório, pelo que irá proceder, com seriedade, a uma revisão das questões aí referidas, que reclamam atenção e aperfeiçoamento, ao mesmo tempo que servirá de referência para o desenvolvimento de projectos similares no futuro. A aquisição de serviços por concurso ou ajuste directo será feita nos termos da legislação aplicável e em cumprimento das indicações das entidades internas competentes e no caso de ser dispensada a realização de concurso público, será obrigatório apresentar esclarecimentos complementares para a
entidade competente verificar a conveniência ou não para o território e irá, ainda,
examinar com rigor a necessidade de efectuar a despesa, e bem assim evitar a repetição da execução em trabalhos de natureza similar”
Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego

“Concordou com as opiniões apresentadas no relatório de auditoria e admitiu existir espaço para a melhoria dos procedimentos de aquisição de serviços. Quanto à
questão da contratação de pessoal, a DSPA irá ter em consideração as situações e o
respectivo planeamento, a longo prazo, especialmente em matéria de recrutamento, a
contratação de pessoal para prestação de serviços será feita ao abrigo do regime de
recrutamento dos trabalhadores. Em relação aos serviços de consultadoria sobre o estudo de monitorização da qualidade do ar de Ka Hó, a DSPA aceitou as opiniões do CA, nomeadamente no que respeita às novas adjudicações dos serviços anteriormente prestados, as quais devem ser analisadas e planeada a continuação desses trabalhos de monitorização, considerando a realização de consultas a outros fornecedores sobre os serviços em questão”
Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental

“Os projectos realizados estavam em conformidade com os seus fins, tendo, já, produzido, efeitos positivos. Admitiu que a forma legalmente exigida é a redução a escrito do contrato, pelo que, da sua parte, houve um certo desvio, na interpretação das disposições legais que regulam a dispensa de contrato escrito. No entanto, desde Julho de 2013, que passaram a ser celebrados contratos escritos, no notário privativo da Fundação, para os projectos adjudicados a entidades locais com valor superior a 500 000,00 patacas ou com prazo de execução superior a seis meses. Embora não tenha sido celebrado o respectivo contrato escrito, foi celebrado um protocolo escrito para cada um daqueles casos e o seu conteúdo não se distanciou muito do que seria o conteúdo do contrato escrito, pelo que, entende que foram assegurados os interesses da RAEM”
Fundação Macau

“Aceitou as opiniões apresentadas no relatório do CA. Desde 2012, a mesma
tem vindo a reforçar a fiscalização de vários procedimentos de trabalho, designadamente na aquisição de bens e serviços, tendo levado a efeito a sua revisão, reorganização e aperfeiçoamento gradual. Em 2013, os “contratos de prestação de serviços” deixaram de ser renovados. Vai continuar a cumprir o princípio da legalidade, respeitando rigorosamente a lei no recrutamento de pessoal, nas aquisições de bens e serviços, e nas adjudicações, e vai continuar, ainda, a reforçar a formação dos trabalhadores para melhorar a execução e optimização dos trabalhos administrativos”
Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais

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