Fazer filmes

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz a sabedoria popular: se estás a fazer um filme estás a fazer um drama. Fazer filmes na vida real (como profissionais) estende-se para além de um género cinematográfico e expressa-se pela panóplia de emoções humanas que gostamos de exercitar. Se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, parece-me uma discussão desnecessária porque procurar a unidireccionalidade dos factos não me faz muito sentido. Um sistema bidireccional é-me mais simpático. Mas talvez seja porque vejo demasiados filmes, e é uma tão confortável forma de passar tempo, que é inevitável não nos sentirmos num. Até agora não conheci ninguém que não tivesse uma fantasia romântica baseada num filme (ou livro, para os mais tradicionais), ou não tivesse um ideal de homem ou de mulher que já não tivesse sido retratada por uma personagem cinematográfica, carregada fisicamente por um actor ou actriz lindos de morrer.
Para as idiossincrasias dos relacionamentos amorosos e do sexo, não há ninguém como o Woody Allen. Ele diverte-nos com um neuroticismo que roça o adorável e o irritante. Com tantos filmes realizados, é claro que ele cai em fórmulas repetidas, mas que têm entretido gerações de homens e mulheres pelo mundo fora. Sobre sexo, amor, paixão, relacionamentos e tesão. Pessoalmente, tenho constantes momentos de clarividência com o Woody, não sei como é que é com o resto do mundo: eu sinto-me compreendida nas suas particularidades e generalizações. Nos últimos filmes a estereotopia tem-me chateado um pouco, à excepção do Blue Jasmine que se demarca pela depressão genialmente representada e de uma forte presença feminina, que se caracteriza pela profundidade psicológica da personagem, algo raramente visto nos seus filmes. Poucas são as personagens do Woody que se tornam memoráveis, exceptuando talvez a Annie Hall e o Alvy Singer. O Woody é sobre os encontros, desencontros, compreensão, desentendimentos e homens e mulheres à luz da psicanálise. Retratos amorosos nova-iorquinos e de uma ou outra capital europeia. A beleza da sua cinematografia vem dos momentos dialógicos.
Reflectindo no trabalho realizado pela Cate Blanchett a dar vida a Jasmine encontrei-me a divagar sobre as mulheres no cinema. Essa forma artística que tenta imitar a vida com o twist das especiarias cinematográficas, tenho que cair no meu discurso bélico pela igualdade de géneros! E para isso apoia-me o teste que mede o machismo cinematográfico. Uma cartoonista decidiu por graça criar uma cena entre duas mulheres que discutem os filmes que querem ver, uma afirma: ‘Só vejo filmes onde haja mulheres a ter uma conversa entre elas que não seja sobre homens’. O teste estabeleceu-se e popularizou-se como o teste Bechdel-Wallace. Claro que não foi redigido por uma equipa de investigadores e não detém validade científica no verdadeiro sentido do termo. Mas a verdade é que são poucos os filmes que encaixam neste critério, e por isso extrapolaremos que o retrato generalizado é de mulheres que só falam de homens e não são capazes de ter uma conversa sobre assuntos mais socialmente relevantes.
Jean-Luc Godard, por exemplo, de quem gosto mas com laivos de irritação, é um realizador que fez parte do desenvolvimento da nouvelle vague francesa, movimento artístico caracterizado pela reintepretação das convencionais técnicas cinematográficas para a altura. Um ultraje pela caracterização feminina! Digo eu, que vi alguns filmes onde as mulheres eram lindas, sonsas, ingénuas e com tiradas literárias de quem fez doutoramento em estudos clássicos. Pelo menos não falam muito de homens, mas raramente as vemos a interagir com o sexo que não seja o masculino (chumba no teste Bechdel-Wallace!). Ou seja, sinto-me na posição de me queixar da objectificação feminina Godardiana e de outras, porque apesar de fantasticamente misteriosas e literárias, não conseguem transpor a realidade feminina.
Estes são alguns (muito poucos) apontamentos de algum descontentamento da minha parte na visualização de filmes. É que esta tendência cinematográfica tem como resultado a surpresa sempre que uma caracterização feminina é de significância, porque infelizmente trata-se de uma raridade. A sério, não estou a fazer filmes quando digo que, nos episódios IV, V e VI da Guerra das Estrelas, as intervenções femininas não duram muito mais do que um minuto (exceptuando as da Princesa Leia). E mais: em toda a saga, não há uma única conversa entre duas mulheres (outro que chumba no teste Bechdel-Wallace!). Esperemos que o The Force Awakens venha mudar isso. E já agora, que a indústria cinematográfica também.

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