Susana e os velhos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] passagem mais emblemática que nos fala da concupiscente idade tardia talvez seja esta: Uma bela e jovem esposa é apanhada nas armadilhas de dois patriarcas que conspiram um plano de aniquilamento quando os seus desejos são gorados. Juízes do povo, anciãos respeitados, visitas da casa de Joaquim, seu marido, estes homens que há muito tinham passado a idade de se fazerem amar pelo corpo, encetam um plano, que dir-se-ia de vingança contra o tempo que passa, vingança contra uma mulher que era a imagem da sua impotência e do seu rancor, de entes a quem a vida abandonara para o grande festim dos belos encontros.
Talvez que, de tempos a tempos, seja bom não esquecermos toda este conhecimento herdado, que tenhamos em conta que o mais velho livro contém as mais intemporais questões. Efectivamente, dois velhos são uma imagem carregada de maus presságios… dois homens velhos subitamente despertos pela recordação de um Eros esmagado por carnes que definham e vontades que não se erguem… por uma raiva surda de um desejo esquecido. Nesta passagem, eles culpam um jovem a quem imputam culpas, um jovem imaginário, projectam a culpa numa virilidade normal e boa dos amantes. Para eles, o amor e a libido não são contemplações saudosas, mas raivas surdas, recalcadas. Impotentes, lançam blasfémias, sacrificam o objecto de desejo, incriminam uma inocente. Estes anciãos eram, no entanto, os sábios de uma tribo.
Pois bem, a sábia e respeitada velhice nem sempre é tão isenta de trama e perfídia quanto a julgamos e, num mundo envelhecido como o que nos foi dado viver, as sociedades requintaram a sua perversa dose de ignaras abominações. Tudo parece mais calmo, mais ordeiro e racional. Parece, porque, efectivamente, por debaixo deste glaciar, há uma antiga máquina de seres em desgaste que atemorizam e condenam a vida, pelo escape rasgado da esperança. Um velho, mesmo que seja Papa, lá no fundo, já nem acredita em Deus. Há um enorme despeito agreste que o tempo dá, como se enferruja o pouco de grande que uma alma contém. Porém, nós fomos apanhados na razão inversa da imagem do sábio.
Toda a trama ardilosa da matéria de facto, toda a clandestina tendência para o vício, a ocultação, o dolo e a má-fé se encontram neste tempo que passa, como uma vitória de que afinal o Homem não é passível de redenção. Conquistados os direitos fundamentais é com eles que devemos agir e é com eles que estamos seguros, jamais com a sabedoria dos outros que envelhecem e nos dizem que são a confiança melhorada.
A astúcia dos sobreviventes pode ser algo com que a soberana natureza dos fortes não contava, um dado demasiado agreste para os seus sentidos… uma erosão na incapacidade de lidar com o ambíguo. Nem sempre se deve deixar os mais velhos por aí, entregues a quaisquer uns ou a si mesmos, podem provocar reacções instintivas estranhas e o Homem não difere muito dos leões em matéria de macho dominante. As vítimas nem todas são biblícas… nem Deus se revela sempre para escorraçar os capciosos e o julgamento destes dois não deixa de ser uma nobre lição.
Nas nossas sociedades tão arrastadas no tempo, convém não esquecer componentes e factos. A geriatria é sem dúvida a mais honorável profissão do mundo, é uma missão quase superior. Vamos precisar de muitos e de uma competência sempre e mais actualizada. A fragilidade com que se revestem aqueles a quem o tempo esqueceu, a usura da sua mórbida sensibilidade, a reserva com que olham a vida, é já de si, e em muitos casos nos parece, um maligno olhar. Uma sociedade, que sexualizou as pessoas até à caricatura, pede para que se entre de novo nos sonhos de Daniel. Os anciãos de Susana existem. O tráfico e abuso sobre aqueles que são a denúncia a algo que morreu continua a ser o mais forte objecto de punição. Se consentirmos, eles não terão piedade, e a mentira das bocas desdentadas terá uma abjecta e tocante má fé que convém estar atento, para não nos abeirar-mos de uma monstruosidade.
Os velhos precisam de protecção, mas os novos também. Dir-se-ia que precisamos de estar salvaguardados da punição do ódio torpe, de um desvio da libido, de tramas subreptícias e da manipulação psíquica de que sempre deram provas. Pode ser duro o que se diz… mas mais duro é o que eles não dizem, inventam e conspiram nas costas das Susanas, dos mundos e das sociedades.
Vivemos em ciclos que não se preparam para questionar e abordar os ângulos das situações, vivemos quase que vinculados a estereótipos que nos impedem de ser defensivos e atentos, remetendo para um corpo colectivo, algo que o nosso não sabe explicar: o corpo, aliás, é um bem que permanece pouco falante… alguns apenas lhe vêem a nudez, a carnação, a gula onanista…. para nós, ele está parado a banhar-se no Jardim.
Mas o corpo pensa e informa-nos. O corpo pensa muito antes da nossa consciência. É um sinal de alerta máximo e não gostamos que nos espreitem sem a devida noção da medida. O corpo não gosta que os velhos olhares sabotem nele o novo, o improvável, o que inspira.
Uma advertência a todos nós que por avançados estados de desenvolvimento nos vamos tornando cada vez mais velhos: transformemo-nos! Nada mais velho, de facto, que uma juventude que se prolonga. Pensemos no bem que é estar perto de outra coisa, do quão difícil é ser jovem, do bem que deixámos de fazer-lhes e quanto isso é mais temível que a morte. Um pouco de afinidade com os que vão na mesma caminhada – um pouco mais de além – mesmo que já não sejam brasa, nem nunca tivéssem sido sóis.
Aquém disto é perigoso ficar. A alma dos anciãos é matéria esquecida pelas formas nascentes que amam os ciclos transformados.

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