Zhou Yongkang e Xi Jinping

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] condenação de Zhou Yongkang, o poderoso membro do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês e antigo chefe dos serviços de segurança da China à pena de prisão perpétua por crimes de aceitação de subornos, abuso de poder e revelação de segredos de Estado despertou enorme atenção da imprensa internacional e propicia importantes leituras.

O perfil do arguido, os termos invulgares da condenação e a sua ligação à campanha anti-corrupção promovida pelo presidente Xi Jinping revelam que o tema ‘corrupção’ se tornou uma prioridade essencial da liderança chinesa para as próximas décadas. Revelam, ao mesmo tempo, as dificuldades de compatibilizar o desígnio da construção de um estado de direito com a preservação do domínio do Partido Comunista no Estado. Coloca dúvidas incontornáveis quanto aos limites da campanha em curso.

Zhou é o mais proeminente membro do Politburo a ser alguma vez condenado por crimes desta gravidade, em seis décadas de vida do PCC. O seu julgamento segue-se ao processo mediático de Bo Xilai e à condenação por crimes de idêntica natureza de ministros, generais do Exército, CEO de empresas estatais, responsáveis provinciais da RPC e dezenas de milhares de dirigentes comunistas. Secretário da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Politburo entre 2007 e 2012, Ministro da Segurança Pública desde 2002, Zhou foi um homem de confiança de Hu Jintao, presidindo ao vastíssimo sistema de segurança interna e de justiça da China.

A sua condenação, a projecção pública interna que foi dada `a sentença, mostra que o regime quis fazer do caso ‘Zhou Yongkang’ um exemplo de que não recuará no propósito de punir ‘tigres e moscas’ (como Xi Jinping gosta de referir) por actos de indisciplina que atentem contra os interesses do Estado, a probidade no desempenho de funções públicas e a imagem interna e externa da China. Mas coloca, ao mesmo tempo, importantes incertezas.

Desde logo a questão do poder e de quem o detém. Visa a condenação de Bo Xilai e agora de Zhou Yongkang a limpeza do aparelho do Estado e do partido de dirigentes corruptos e subornáveis? Ou é apenas um pretexto para o reforço do poder pessoal de Xi Jinping, em termos que não se viam desde o período de liderança de Deng Xiaoping e para o apartamento do princípio da responsabilidade colectiva na direcção política do partido e do Estado? Se assim é, o que distingue, afinal, Xi Jinping de Mao Zedong?

Depois a questão do alcance da campanha anti-corrupção. Segundo a acusação, Zhou Yongkang terá recebido subornos de Jiang Jiemin, presidente da China National Petroleum Corporation no valor de 118 000 US (cerca de um milhão de patacas). Jornais de referência afirmaram que Zhou e o círculo familiar detêm uma fortuna avaliada em 160 milhões de dólares (1.2 biliões de patacas) não contando com contas bancárias, propriedades e aplicações financeiras. Longe de ser um caso isolado, as mesmas fontes afirmam que outros dirigentes seniores do PCC – desde logo o ex-Primeiro-Ministro Wen Jiabao, o ex-presidente da Comissão Politica e Consultiva do Povo Chinês, Jia Qinglin e a família próxima de Xi Jinping – detêm patrimónios de montante várias vezes superior ao apontado a Zhou. A pergunta que se coloca é como pode a campanha anti-corrupção ‘caçar outros tigres’ sem atingir o núcleo essencial do poder na China e das famílias que manifestamente o co-partilham? Ou é a campanha selectiva e dirigida apenas contra inimigos internos?

A delicadeza da questão, o facto de Zhou Yongkang deter, seguramente, informações relevantes que não interessa que sejam tornadas públicas, levou a que fosse feita uma excepção à regra anunciada em Março, pelo Tribunal Superior da China, de que os julgamentos de quadros seniores do partido serão abertos ao público. O julgamento foi feito à porta fechada e apenas a confissão de Zhou quanto aos crimes de que era acusado foi gravada e retransmitida pela televisão chinesa. Segundo alguns observadores, o segredo que rodeou o julgamento pode ser sinal que Zhou não terá cooperado com as autoridades tanto quanto se esperaria e que a sentença terá sido combinada ainda antes de o julgamento começar. Com arguidos desta proeminência, a decisão nunca é deixada à polícia, à procuradoria e aos magistrados. É tomada pela liderança política em consulta com os ex-lideres, num processo de consensualização da decisão que singulariza o sistema político chinês.

Qual a extensão da corrupção na China e em que medida pode pôr em causa a sobrevivência do regime chinês? É difícil responder à questão. Desde logo, porque não há dados fiáveis quanto à  grandeza do problema. O país tem surgido nos rankings de Transparency International’s Corruption Perceptions Index (que organiza os países de 0 a 100, dos mais corruptos aos mais transparentes) no meio da tabela. Em 2014 foi-lhe atribuída a pontuação de 36, o que coloca a China em 100 lugar, num conjunto de 174 países, a par da Indonésia e do Vietname. Quanto à realidade concreta do problema e às possíveis soluções as opiniões dividem-se.

Fareed Zakaria, jornalista e especialista em relações internacionais, tem defendido que a corrupção na China é diferente da que se verifica em países em vias de desenvolvimento como a Índia e a Indonésia (é aqui crónica, alargada, massiva). A corrupção na China, diz Fareed, envolve gente bem posicionada que recebe tratamento preferencial em empréstimos do Estado, investimentos e contratos públicos. Minxin Pei, especialista em questões chinesas e director do Centro de Estudos Estratégicos do Claremont McKenna College, tem uma posição contrária e diz que a corrupção na China é um problema histórico e endémico, transversal à sociedade e que põe em perigo o futuro da China’. Minxin adianta ainda que, por razões internas, a actual liderança chinesa será incapaz de levar a campanha anti-corrupção muito mais longe do que o fez até agora.   

Tenho uma posição mais próxima de Roderik MacFarquhar, professor de relações internacionais na Universidade de Harvard. É demasiado cedo para perceber até onde quererá Xi Jinping levar a campanha em curso. Por um lado, porque o julgamento de Zhou Yongkang foi recente e não é ainda perceptível qual o seu impacto na opinião pública interna. Barómetro a que a actual liderança dá muita atenção. O carisma e a confiança do cidadão comum na liderança de Xi Jinping parece não ter sido atingida. Ele incorpora o ideal popular do político íntegro que combate o nepotismo e o favorecimento ilegítimo onde quer que ele se esconda. Mas, por outro lado, o presidente da China não pode alargar excessivamente a ‘caça aos tigres’ sem pôr em risco a legitimidade do partido, a natureza monopolista do seu poder e a própria coesão da liderança. Mao – figura que manifestamente o inspira – soube, quase sempre, parar as ‘campanhas de rectificação de massas’ quando elas corriam o risco de destruir o partido. A Revolução Cultural revelou os limites da sua obsessão em aniquilar os inimigos internos.   

Xi Jinping é um líder forte como há muito tempo não se via na China. Mas o sistema de cooptação de líderes em que assenta a máquina do PCC tem as suas próprias limitações. Xi Jinping nunca governará contra os interesses do partido e da sua elite dirigente. Xi não é Gorbatchov, como muitas vezes tem referido. A perestroika não faz parte do seu vocabulário.   

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