Psicologia | Factores socioculturais na China podem “ocultar” traumas

Um estudo psicológico realizado por três investigadores de Macau, Hong Kong e Estados Unidos concluiu que factores socioculturais podem dificultar diagnósticos de perturbação dissociativa da identidade em pacientes chineses. O trabalho refere que as perturbações dissociativas são muitas vezes confundidas com depressões ou estados de ansiedade

 

Diagnosticar casos de perturbação dissociativa da identidade (DID) em pacientes chineses pode tornar-se num desafio para psicólogos e psiquiatras, mas não é impossível. No entanto, cabe aos terapeutas “navegar as nuances culturais, desafiando simultaneamente as inconsistências culturais” da comunidade chinesa para analisar estes casos, tendo em conta que muitos pacientes chineses “tendem a reprimir emoções e consideram inapropriado mergulhar na própria psique e nos próprios sentimentos”.

Esta é uma das ideias principais do estudo “Working with Chinese trauma survivors with dissociation: Lessons from two cases in Macao” [Trabalhando com sobreviventes chineses de trauma com dissociação: Lições de dois casos em Macau], da autoria de Im Wai Lao, que tem mais de dez anos de experiência em Macau, Robert Grant e Hong Wang Fung. O artigo científico foi publicado em Novembro no European Journal of Trauma & Dissociation. O trabalho foi feito com base em casos clínicos com pacientes chineses que apresentaram sintomas como ansiedade ou depressão, sendo que alguns tentaram mesmo o suicídio. Em todos, os terapeutas perceberam que a resposta estava nas vivências familiares e da infância, embora tenha sido um processo demorado, pois era difícil aos pacientes verbalizar o que sentiam e buscar a origem dos sentimentos.

Segundo o estudo, a dissociação “refere-se a falhas no processo de integração das próprias experiências psicofisiológicas, tais como memórias, emoções e identidades”, sendo que quando resulta de trauma está “intimamente relacionada com experiências interpessoais adversas, especialmente durante a infância”. Contudo, até à data, não era muito explorada “a forma como as normas e valores socioculturais tradicionais podem estar associados à dissociação”.

O estudo conclui que a “dissociação relacionada com o trauma existe na comunidade chinesa, embora possa estar escondida por detrás de outros problemas”. Os académicos consideram que “os factores culturais chineses podem reforçar a utilização da dissociação como forma desadaptativa de lidar com a situação, porque a expressão emocional não é valorizada e porque a harmonia interpessoal é enfatizada, mesmo quando existem relações tóxicas e/ou abusivas”.

Segundo os autores, tal deve-se às diferenças entre a cultura chinesa e a ocidental. “Na cultura ocidental moderna defende-se a individualidade”, enquanto a cultura chinesa “enfatiza não só os papéis sociais e a harmonia nas relações interpessoais, mas também os sintomas físicos e os comportamentos externos”. Tal faz com que, na hora de se sentar na cadeira do psiquiatra, o paciente chinês tenha mais dificuldade em verbalizar o que sente e procurar a verdadeira origem do sofrimento mental.

Tempestade de emoções

Um dos casos citados pelo estudo é o de ‘CL’, designação atribuída a uma mulher chinesa de 32 anos, administrativa, da classe média, que há quatro anos vive e trabalha em Macau. A mulher sofreu “um colapso emocional súbito, sem qualquer razão óbvia que pudesse ser identificada” depois da passagem do tufão Hato por Macau, em 2017, que gerou uma vaga de destruição e dez mortos. Depois da tempestade, a mulher começou “a sentir insónias intermitentes e tornou-se excessivamente sensível a trovoadas, acordando durante a noite, aterrorizada, tendo dificuldade em voltar a adormecer”.

Depois do colapso seguiu-se o registo de “sintomas depressivos, incluindo pensamentos suicidas, e sintomas somáticos como fadiga extrema, dores musculares, falta de ar e agravamento da insónia”. Os sintomas agravaram-se aquando da passagem por Macau do tufão Mangkhut. Em plena pandemia, em 2020, “CL” passou a ter ataques de pânico, pesadelos e fortes dores de estômago.

Os autores descrevem que “CL” foi “criada no seio de uma família com graves carências emocionais e o seu contexto cultural acentuou os graves problemas de identidade causados pela forma como os pais se relacionavam com ela”. O terapeuta percebeu que, da parte da mãe, “faltaram cuidados, aliada a uma enorme crítica”, enquanto do pai houve “ausência e o distanciamento afetivo”, com impactos na auto-estima da paciente, cenário que “provavelmente contribuiu para a sua patologia dissociativa”.

Contudo, “a tendência para a somatização entre os chineses dificultou a exploração do interior de ‘CL’ pelo terapeuta para fazer um diagnóstico”. De frisar que só três meses depois do início da terapia se começou a verificar “uma abertura significativa na amnésia de ‘CL'”. Foram precisas 14 sessões de terapia para que a paciente reconhecer a fúria com a sua a mãe a tratava, momento que virou a página na terapia levando ‘CL’ a falar mais abertamente das memórias com a progenitora.

Metas físicas

Tendo em conta este caso clínico, os autores do estudo referem que “muitos chineses não têm consciência emocional e tendem a expressar os seus sentimentos através de sintomas físicos, como dores de cabeça e de estômago”. Este panorama explica-se pelo facto de, na cultural tradicional chinesa, as emoções serem consideradas “culturalmente irrelevantes”, pelo que “o reconhecimento das dificuldades emocionais é muitas vezes visto como um sinal de fraqueza ou inutilidade”.

Na relação entre pais e filhos, “as filhas são desencorajadas a fazer quaisquer comentários negativos sobre as mães, independentemente da verdade, uma vez que é considerado pouco filial, o que tem um peso significativo para muitos chineses”.

O estudo relata ainda o caso de ‘K’, uma mulher que nasceu numa família com dificuldades, em que só o pai trabalhava como operário, o que a obrigava a cuidar dos irmãos e a ter, desde cedo, vários trabalhos a tempo parcial. A busca pela terapia fez-se quando o seu casamento começou a ruir, originando pensamentos suicidas logo após o nascimento do primeiro filho. O casamento não melhorou depois do nascimento da segunda filha, com o marido a não se responsabilizar pelas contas da família, o que levou ‘K’ a sentir-se “perplexa, exausta e desamparada”.

Neste caso, o terapeuta revela não ter tido sequer “um pequeno espaço para entrar” no ambiente emotivo da paciente, pois ‘K’ não conseguiu verbalizar o que sentia. Segundo o estudo, tal explica-se pelo facto de, “na cultura chinesa, as crianças serem normalmente impedidas de falar ou perguntar, sendo-lhes exigido silêncio e submissão, especialmente as raparigas, uma vez que são consideradas inferiores ou mesmo sem valor aos olhos de muitos pais chineses”.

Descreve-se ainda que, na comunidade chinesa, dá-se uma “ênfase significativa a certos marcos em idades específicas, como o casamento e ter filhos, particularmente para as mulheres”. ‘K’ procurou ajuda psicológica “devido ao seu casamento conturbado”, sendo que, “durante anos, foi ela que teve de pagar a maior parte das contas e de tratar de todas as tarefas domésticas”.

Os autores apontam ainda que estas experiências “estão profundamente ligadas aos valores e abordagens chinesas para lidar com questões emocionais e psicológicas”. Nestes casos, dá-se “prioridade à resistência em detrimento dos sentimentos pessoais”, para “tentar melhorar situações difíceis e evitar quebrar, apesar da dor, do sofrimento e dos sintomas associados”. O divórcio, por exemplo, “é considerado um fracasso cultural para as mulheres na sociedade chinesa, onde uma mulher divorciada é vista como uma ‘esposa abandonada'”.

Assim, os autores do estudo concluem que “algumas normas socioculturais podem contribuir para o desenvolvimento e manutenção de sintomas dissociativos”, embora assumam a necessidade de realizar “mais estudos empíricos”. No trabalho do terapeuta, recomenda-se que este, para detectar casos de DID, deve “ter em consideração os factores culturais” do paciente e “ser culturalmente sensível”, além de “colectar informações do paciente sobre as experiências da primeira infância, incluindo antecedentes familiares e interacção com os pais”.

Lê-se ainda que o respeito pela hierarquia, na sociedade chinesa, é mais importante do que um olhar sobre si mesmo e a individualidade, além de que “a cultura chinesa coloca frequentemente uma maior ênfase na adaptação a papéis ligados ao contexto”.

Descrevem os autores que, nas famílias chinesas, “a hierarquia implica que se espera que os indivíduos ouçam e se submetam aos mais velhos, ao mesmo tempo que compreendem como interagir com cada membro da família de uma forma distinta, a fim de manter a harmonia externa”.

Com base nos casos descritos, refere-se que ‘CL’ e ‘K’ sofreram “traumas de vinculação e apresentaram sintomas de perturbação dissociativa”, pois ‘CL’ não se recordava “de ter sido amarrada e expulsa de casa pela mãe”, enquanto ‘K’ não tinha memória “de ter sido abusada sexualmente pelo avô”.

Ambas as mulheres “sofreram confusão de identidade, lutando constantemente para se definirem e sentindo a dor de não terem crenças e valores morais consistentes”. Além disso, “ambas revelaram despersonalizações, sentindo-se emocional e fisicamente desligadas”.

Os autores defendem ainda que seja feita “mais investigação sobre a forma como factores ou valores socioculturais específicos, por exemplo, a piedade filial ou preferência pelos rapazes em detrimento das raparigas, possam estar associados a problemas de saúde mental, incluindo a dissociação”.

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