Europa 2015

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s mitos são como os sonhos, no dizer de Calderon de la Barca: “eles sempre têm razão e não há maior dor que a de não poder amar”. Nós, paradoxalmente, nascemos numa cultura de Amor, na tradição judaico-cristã. O facto de parecer ter sido um insucesso deve-se mais aos novos preconceitos que ao registo da herança. Vem isto a propósito da Europa, esse continente de fronteiras fluídas e instante sombrio, da flutuação da sua deriva, do seu rápido desaparecer como modelo de uma virtude já quase esquecida: a soberania.
Os europeus já devem estar em minoria nos seus próprios territórios, com populações envelhecidas, uma decadência e esvaziamento notórios. Os europeus são, enquanto população autóctone, uma população doente. Doente animicamente, esvaziada, logo que o mito do dinheiro e da abundância para todos também se foi. Subitamente ficaram mais pobres, e tanto mais pobres porque os grandes mitos se foram, as ilusões e a sua laicidade ajudou a criar esferas de um imenso vazio onde o Catolicismo parece uma ressonância sem sentido. Ficámos mais tristes, mais pobres e não temos Deus. O Diabo em que acreditámos traiu-nos e também não quis saber de nós. Esse belo deus do Capital só quer saber de alguns e iludiu com força mortal os que esperaram o fim das provações.
As coisas parecem pacíficas, sim, mas sente-se uma estranha tensão, uma quase nuvem de bolha flutuante que poderá rebentar a um qualquer momento, aquela paz que antecede os grandes temporais. Existe efectivamente um “ vapor” escuro no ar dos céus europeus, para não falar na imensa truculência dos povos a norte, cujo louro define quantas vezes o que tão “civilizadas” estruturas são capazes nos momentos especiais de fazer e pôr em prática.
Dois mil e dezasseis vai ser o ano da reedição da tão esperada (imaginem) «Mein Kampf», o grande tratado criminal da era moderna e a negação da nossa identidade humana universal. Esta reedição não será de todo inocente, mesmo com o trabalho explicativo das notas introdutórias, nem ausente de sentido. Num instante destes era tudo o que não precisaríamos, mas a Europa ama os seus Infernos: o editor não tem dúvidas, o texto deve ser publicado – eu sou favorável à publicação de «Mein Kampf» pois é um documento histórico que influenciou milhões de pessoas.
Claro, nós nem devemos fazer juízos de valor, História é isso mesmo, e as pessoas como bem sabemos são seres influenciáveis, o que o rebanho pensa não é História, mas sim aquilo que melhor se adapta às circunstâncias de alguns. No entanto, essa pobre gente pensa que pensa, mas efectivamente há quem a pense melhor: e diz mais: « é preciso deixar algum tempo para esta iniciativa se organizar pois que não se trata de uma iniciativa de mercenários, mas de uma decisão colectiva de historiadores».
Nós, leitores, somos como bem se sabe personagens incautas, lemos o que os grandes grupos de “historiadores” acham, porque eles pensam em tudo, as notas vão ser talvez de uma incisiva e subliminar tendência a um nazismo mais limpo, menos húmido, mais seco, rápido e que se não consubstancie nas nossas células nervosas, pois há que secar os pântanos e preparar para o electrochoque de néon que as mentes não mercenárias assim desejam. Talvez que Hitler até seja demasiado grotesco face ao “inteligente” esquema historicista em curso e não passe de um palhaço amestrado e ainda cheio de vastos oceanos de emoções.
Nós vivemos nesta Europa e não na outra, aquela que nos dizem outras histórias de encantar, vivemos qualquer coisa entre o impensável fortemente provável, num espaço de tempo tão veloz que melhor será não focarmos demais as atenções: entre o mito da felicidade e as fotos bem-sucedidas, o glamour, e toda essa trapalhada e a vida dos cidadãos, há diferenças maiores que entre a água de Marte e a água da Terra, mas o Sol de facto tapa tudo.
Seria de mau gosto não relevar aqui o prazer estético que foi as cabeças com lenços das mulheres islâmicas, lindas, de calças, de tudo o mais, mas castamente e rigorosamente enleadas nas suas decentes silhuetas. Ao lado da mulher europeia, de cabelos em pé, pintados, despenteados, são figuras dignas de mulher, o não reparar o quanto me faz feliz os judeus ortodoxos passeando-se com os seus tefilins, kiipás, livros de orações, e os islâmicos rezando descalços numa qualquer praça ou estação, é uma paisagem de uma imensa civilidade ao contrário das expressões materialistas de efeito cartesiano. É uma revelação e um maravilhamento. Digo judeus e árabes, dado que não se vêem católicos, freiras, padres, monges, nem se sabe bem o que trajam, no corpo e na alma. As imponentes catedrais não tardarão a ser readaptadas para o Islão (nada que não se tivesse já feito no sentido inverso –bem pensado, aliás, a ver pelo carnaval de imagens e coisas que são típicas manifestações dos povos bárbaros cristianizados), as duas outras religiões são iconoclastas e vão partir a estatuária e deitar para um canto aquela quantidade de abominações que é a representação de Deus em fascículos. Todo o ser que ora é digno de amor.
Poder-se-ia pensar numa grande Babilónia, já que somos uma cidade única, as coisas estão unidas umas às outras formando a Cidade, todos juntos repartindo o chão, mas creio que nos abeiramos também de uma supra catástrofe humanitária cujos contornos não nos pode ser dado conhecer. Pareceu-me de uma beleza trágica!
Bela, só mesmo a exposição de Chagall, no Museu de Arte Contemporânea de Lille no primeiro dia da apresentação. Todas as mais representativas obras ali estavam à distância de um beijo, ou de uns olhos marejados de quentes lágrimas… a delícia de uma música em forma de pintura e toda a sua orquestração de maravilhoso e santo, de terno e bom, de féerico e onírico; Chagall é um menino, meio anjo, meu homem… As cartas a Man Ray, aos pais… tudo nele é absolutamente Poesia. Ele não esqueceu de reintegrar Jesus na sua tribo e fá-lo com a beleza de um grande artista: integra-o na cena ao lado dos seus. É um movimento espiritual maravilhoso que dá um efeito estético inaudito. Não estamos à espera que tudo numa tela se mova de dentro para fora e de fora para dentro de maneira tão integrada. A dança, a união, os pés sempre no ar (para quem não tem terra, os pés devem de facto ser asas) a imensa ternura do Anjo Azul, o profeta Elias num carro rumo ao céu de fogo a um cantinho da memória das coisas, o rei David, a sua harpa, tudo é música, tudo isto pertence ao sonho profundo onde brota movimento e cor.O seu olhar tão límpido, também- como um girassol- o grande plano do seu rosto iluminando o grave Outono europeu. São estes os maiores momentos.
Nada nos surpreende mais do que aquilo que conhecemos ou julgamos conhecer, pois é da intimidade que nasce a voz nascente das coisas transformadas. Se nada conhecemos, nada nos surpreende, porque o novo é em si matéria pobre, precisamos de conhecer para encontrar pontos de surpresa, tanto, que por momentos, pensamos em todas as direcções do real e o que é de facto uma realidade.
O deus cornígero que raptou Europa fê-lo por razões sem dúvida apaixonadas… disso nos dá conta a imensa arte pictórica, pondo-a numa posição de quem gosta do dorso do amante raptor. Assim ela me pareceu na sua beleza de velha matrona, ainda lúdica e robusta, mas sem a força de inspirar e de se refazer da “gordura” que foi acumulando na sua própria estrutura. É agora a deusa velha de um panteão de velhos que se entretém vagamente nos últimos deleites, nem que seja um rapto estratégico para alimentar a gula e a luxúria que por vezes ficam ridiculamente mal, mas, que há muito sabe que outras mais belas deusas a substituíram. Neste caso presente, uma ocupação sem freio nos seus domínios e salões onde diz pouco e nada sabe resolver.
Estejamos sempre atentos ao Crepúsculo dos Deuses, se o Doutor Fausto nos aparecer não tenhamos medo: ele espera como o deus das auroras, também e mais do que nunca, o seu alvorecer.

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