António Graça de Abreu, docente, poeta e tradutor: “Portugal não investe em Macau”

Professor na Universidade de Aveiro, poeta e tradutor, António Graça de Abreu já visitou todas as províncias da China, país para onde foi viver em 1976. À margem de uma palestra recente proferida na Universidade Nova de Lisboa, intitulada “História Chinesa: As relações China-Portugal”, o académico falou da ida de Ramalho Eanes à China em 1984 como o ponto alto da ligação bilateral. Sobre Macau, recorda os limites de poder da Administração portuguesa do período pré-1999 e um encontro com a Companhia Nam Kwong, que denotou o poder chinês no território à época

[dropcap]Q[/dropcap]ual é para si o momento mais marcante desta relação entre Portugal e a China?
Talvez em 1984, quando Ramalho Eanes foi à China e tem um encontro com Deng Xiaoping, e se começa a antever e a prever o fim de Macau sob bandeira portuguesa. Já estava tudo mais ou menos alinhado em relação a Hong Kong, e é a altura em que Portugal começa a ter consciência de que inevitavelmente um dia a bandeira portuguesa seria arreada. A partir da Declaração Conjunta é o fim de mais de 450 anos de presença portuguesa em Macau efectiva, com algum controlo sobre o território. Embora esse controlo e essa soberania portuguesa tinham sido sempre muito divididas e muitas vezes pouco eficiente, porque como sabe os chineses sempre tiveram uma mão forte sobre o território de Macau. Os portugueses, até há poucos anos, tinham a ideia que mandavam bastante em Macau, mas isso é tudo muito relativo. É uma terra muito especial.

Sempre foi uma Administração controlada.
Mandávamos no que directamente nos dizia respeito, mas a outra parte do icebergue foi bem escondida pelos chineses ao longo dos séculos. É um dado que marca aquele território. É um poder não bem oculto, mas relativo.

Era o poder das elites?
Cheguei à China em 1977, através do PCP-ML (Partido Comunista de Portugal Marxista-Leninista), que era o único partido português que tinha relações institucionais com o Partido Comunista Chinês (PCC), antes e depois do 25 de Abril. Apercebi-me logo que esse relacionamento entre Portugal e a China era muito estranho, diria eu, porque uma coisa é o relacionamento de Macau e as zonas adjacentes, e tem sido assim ao longo dos séculos. Outra coisa são as relações de país para país, entre Lisboa e Pequim. O relacionamento entre o PCP-ML e o PCC era entre Lisboa e Pequim, não passava por Macau. No entanto, fui a Macau pela primeira vez em 1979 e recebi ordens, se se pode falar assim, para apresentar cumprimentos à companhia Nam Kwong. De facto, esses senhores eram os representantes efectivos do PCC em Macau, mas com uma capa de companhia comercial que ainda hoje existe. Nessa altura eram preponderantes. Fui recebido por Ho Cheng Peng e este senhor tinha ligações estreitíssimas com o PCC, e só depois é que comecei a perceber onde estava. Durante a Revolução Cultural, naqueles anos complicados, em que não se sabia exactamente o que estava a acontecer na China e os próprios chineses, líderes do partido, estavam com problemas porque aquilo esteve quase a descambar numa desorganização completa do partido e mais alguma coisa, Ho Cheng Peng tinha tudo preparado em Macau para receber quem quer que fosse, através dos canais do partido, para os fazer chegar a Macau e os colocar em qualquer parte do mundo. A importância que os chineses com ligação à China tinham em Macau nos anos 80, 60, com Ho Yin, escapava quase sempre ao controlo das autoridades portuguesas. Não entravam dentro desse mundo nem tinham de entrar, e sempre foi assim. Há a amizade entre os povos…

Mas há sempre uma barreira?
Há a barreira linguística e das mentalidades, e dos afectos, e aqui falo dos afectos. Por exemplo, o senhor Ho Cheng Peng afecto pelo PCC, havia também os interesses e as motivações de cada um. Até pelo sentimento patriótico que é muito forte na China, ainda nos dias de hoje. Isso não é igual a nós (portugueses) e complica o nosso entendimento. Fui então recebido por Ho Cheng Peng, mas deram-nos uma importância silenciosa e na altura não falei. Não convinha falar sobre isso. Fui recebido por esses senhores e depois enviaram-me livros para Pequim.

DR

Mas havia depois o grupo que estabelecia a ligação entre chineses e portugueses, composto por pessoas como Roque Choi ou Ho Yin, que referiu há pouco. Mas não havia uma ligação efectiva?
Mas esses sabiam de tudo e faziam até jogo duplo, diria eu. Sabiam quem eram os poderes chineses em Macau e havia alguns portugueses que eventualmente já tinham boas ligações. Já nessa altura o Jorge Neto Valente tinha boas ligações com a companhia Nam Kwong, por exemplo. Foi ele que me encaminhou, de algum modo, porque eu não sabia bem mexer-me em Macau, era um homem de Pequim, nunca tinha passado nem por Macau nem por Hong Kong. Outra coisa que não gostei de Macau nesses anos era que os portugueses estavam muito zangados uns com os outros.

Refere-se ao período do pós-25 de Abril?
Sim, anos 70, 80. Havia uma série de guerrilhas permanentes, uns portugueses eram importantes, mas estavam em Macau há dois ou três anos e falavam da China com uma autoridade enorme. Nunca tinham passado das Portas do Cerco e diziam já saber tudo. Eram bem pagos e mesmo assim queixavam-se. Mas falo no geral. Outra questão: porque é que Macau não dá sinólogos? Porque se calhar as pessoas chegam a Macau e pensam que sabem tudo sobre a China. Aprendem português no início e depois fartam-se. O português não é metódico nem organizado, essencial para aprender chinês.

Ana Maria Amaro, que viveu em Macau 15 anos, chegou a fundar o Instituto Português de Sinologia.
E o que é feito desse instituto? Ela só criou, mas nunca funcionou. Tem pessoas que não fazem rigorosamente nada, não tem publicações. Deveriam existir mais centros de estudos chineses em Portugal e não existem, e Macau aí também não ajuda. Mas Hong Kong também não é um bom sítio para criar sinólogos, também não há muitos. Há a vida dos expatriados, e fazem a vida entre eles. Não se ligam ao mundo chinês nem estão interessados. Meter a cabeça dentro da China dói.

Quando foi para a China não tinha esse grupo de apoio.
Não havia expatriados. Havia a embaixada a 19 quilómetros do lugar onde vivia. Fui escrevendo e também sobre o meu dia-a-dia. Fui aprendendo chinês e tentando mexer-me naquele mundo. Viajei muito pela China, visitei todas as províncias. Fui trabalhar para as Edições de Pequim e foi a imersão no mundo chinês e na própria propaganda do PCC. Publicávamos uma revista de propaganda sobre a China, sobre a qual não concordava, mas sempre pensei: “quem sou eu para concordar ou não? Para corrigir um universo, na altura de 900 milhões de pessoas?”.

Aceitava.
Temos de aceitar que do outro lado há um bloco sobre o qual temos a nossa opinião, mas não me compete a mim corrigir eventuais erros do PCC, até porque os erros de hoje podem ser coisas boas de amanhã.

De todos os governantes portugueses quais foram aqueles que melhor lidaram com o processo de Macau, os que melhor souberam dialogar com a China?
Diria que nenhum, mas não sei. A verdade é que essas visitas são sempre protocolares. Em 1995 fui com Mário Soares à China, tive a sorte de ser convidado. Estava a dar aulas de cultura chinesa na Missão de Macau em Lisboa. E aí apercebi-me que as pessoas nessa comitiva grande de empresários e jornalistas, planavam sobre a China. Chegávamos a Pequim e aquelas pessoas não entraram bem na China. O ministro dos Negócios Estrangeiros era Durão Barroso, cheio de problemas, porque era do PSD e o Mário Soares era do PS. As negociações não davam quase nada, não tinham consequência. Mesmo os empresários que os presidentes da República ou os primeiro-ministros costumam levar fazem mal o trabalho de casa.

Ainda hoje?
Ainda hoje. Estou a lembrar-me dessa viagem de 1995. Contaram-me depois que os 70 ou 80 empresários contactaram as comitivas chinesas e achavam que rapidamente iam fazer grandes negócios. Mas esqueceram-se de fazer o trabalho de casa. Chegamos lá, desenrascamo-nos e depois logo se vê. Muitas vezes até Macau, e o Fórum Macau não aproveitamos. Com o chinês tem de ser tudo muito bem trabalhado. Há coisas que têm sido bem feitas, há empresas que trabalham bem e que agora tem os seus escritórios em Xangai. Lembro-me da Corticeira Amorim que há 20 ou 30 anos colocava cortiça em toda a Ásia.

E como vê as relações hoje em dia entre a China e Portugal? Começam a surgir algumas críticas ou receios pela forma como a China está a investir no país.
Não conheço bem a parte económica, sou mais ligado à cultura.

Mas pergunto-lhe a nível diplomático, com todas estas visitas que têm sido feitas.
As relações são boas e tem-se procurado que não haja atritos nem conflitos. Mas é evidente que com a própria comunidade europeia tenha havido alguns problemas com a política “Uma Faixa, Uma Rota”, porque Portugal embarcou rapidamente nela. Parecia um bom negócio para Portugal, mas a Europa ficou um bocadinho de pé atrás, porque a comunidade europeia disse que isso só servia a China. Portugal tem estado calado, é um país pequeno. Mesmo assim as importações e exportações para a China já começam a ter algum peso. Portugal tem tentado a nível das exportações, sobretudo da carne de porco, que os chineses precisam. Há uma série de negócios que têm de se fazer, mas que têm de ser bem preparados. As contrapartidas é que são sempre discutíveis. Os chineses têm quase liberdade plena para abrirem empresas na Europa, mas o contrário não acontece. Mas a China também está a atenuar as limitações que tem tido face ao investimento estrangeiro. O chinês gosta muito de jogar, nos negócios e na política. Portugal não é muito duro e determinado. Agora começamos a ter alguns especialistas nesta área, mas não tínhamos.

Quais foram os grandes erros de Portugal em relação a Macau ao longo destes anos?
Antes da transição Portugal lembrava-se muito de Macau, era uma boa fonte de rendimentos, inclusive para algumas forças políticas. Mas era assim que funcionavam as coisas. Macau foi plataforma de bons negócios e bons empregos. Mas depois começou a ficar um pouco esquecido pelo mundo da política e dos negócios. Mas, repare: há o Fórum Macau que é subsidiado pelos chineses, Portugal não investe em Macau. Mas os resultados do Fórum Macau são relativos. Quando se fala dos negócios da China, as pessoas dizem que Macau é o trampolim. Isso repete-se há 100 anos, não é de agora. Em Macau estamos na China, mas estamos a 2800 quilómetros de Pequim. Negociar com a China a partir de Macau é diferente, e os países que estão no Fórum Macau também têm as suas embaixadas e adidos comerciais, como é o caso do Brasil, que tem uma embaixada pujante, que não precisa de passar por Macau para coisa nenhuma. Há países de língua portuguesa que até desprestigiam Macau porque têm interesse em fazer os seus negócios directamente nas suas embaixadas em Pequim ou Xangai. É mais fácil porque estão mais próximos das empresas. Os negócios do petróleo entre a China e Angola não passam pelo Fórum Macau, por exemplo.

Agrada-lhe o rumo que Macau está a tomar?
Macau foi incorporada na grande China em 1999, e a partir daí o jogo tem sido um bocadinho diferente. Os casinos cresceram exponencialmente. Macau não é igual a nenhum outro lugar do mundo. É uma terra complexa. Em Portugal quase todos somos portugueses, mas o chinês de Macau vê a sua terra de determinada maneira, e os chineses que vivem em Macau oriundos da China já olham para a realidade da terra de maneira diferente. Temos depois os portugueses e os macaenses. Os portugueses conseguem sobreviver porque tem a arte de saber viver em Macau. Penso que aqueles que amam mais Macau são os macaenses e os chineses nascidos em Macau. Em Hong Kong, chineses lá nascidos são mais de quatro milhões, e a população é de sete milhões. E Macau é pequena. Hong Kong podia ser independente, porque além de ser uma grande praça financeira, tem o maior porto de contentores do mundo. Tem um grande poder económico e uma pujança que lhe iria permitir não depender da China, a não ser para os negócios. Aí tem de saber negociar. As pessoas de Hong Kong que se manifestam nas ruas têm a percepção de que o território tem de ser uma coisa muito diferente da China, em termos de direitos e liberdades. Eu compreendo-os, mas Hong Kong está inserido no grande mundo chinês, onde essas grandes liberdades e direitos, que fazem parte do nosso mundo ocidental, ainda não prevalecem. Deng Xiaoping dizia que o primeiro direito humano é podermos comer todos os dias. Muitas pessoas na China não se preocupam com a ditadura. Podemos estar a falhar ao avaliar a China de acordo com os nossos conceitos ocidentais, o que não quer dizer que não haja valores universais. Penso que os chineses querem mais liberdades, mas toda a gente quer mais liberdade, é da natureza humana. Por exemplo na Internet. Xi Jinping quer reforçar o poder do partido, porque os chineses têm muito medo do caos. Se as manifestações de Hong Kong entrassem pela China adentro, imagine o que acontecia ao país.

Caía o poder?
Podia dar uma guerra civil. E um dia isso vai acontecer, talvez no seu tempo, não no meu. Daqui a 30, 40 ou 50 anos a China vai passar por grandes convulsões. É inevitável e os chineses sabem isso há muitos anos. O partido vai-se desagregar. Isso será mau para a China e para o mundo inteiro. E os negócios?

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