A mancha humana

Roth, Philip, A Mancha Humana, Dom Quixote, Lisboa, 2005
Descritores: Literatura Americana, Ficção Psicológica, Afro-americanos, Judeus, Identidade, Racismo, Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 377 p., ISBN: 972-20-2577-5.
Cota: 821.111(73) -31 Ro

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]hilip Milton Roth é um escritor norte-americano de origem judaica (mais um) que nasceu em Newark, Nova Jersey (Onde nasceram outros grandes escritores americanos), a 19 de Março de 1933. Actualmente diz que deixou de escrever e que Nèmesis é o seu último romance. Trabalha, ao que parece, na elaboração da sua biografia com Blake Bailey. Philip Roth publicou uma extensa quantidade de livros, dos quais destacaria Good Bye Columbus de 1959, por ser a primeira obra reconhecida pelo público e pela crítica; O Complexo de Portnoy de 1969, por ser a obra que lhe deu celebridade e a sua primeira obra-prima; O Teatro de Sabath que de algum modo é o clímax deste ciclo marcado pelo desejo sexual, embora em boa verdade todos os romances de Philip Roth apresentem esta marca a par dos temas que reflectem os problemas de assimilação e identidade dos judeus americanos. Destacaria ainda A Mancha Humana de 2000 pois culmina a trilogia americana, em que Roth desconstrói a ideologia americana (politicamente correcta e do politicamente correcto) e embora os outros dois, ou seja A Pastoral Americana e Casei com uma Comunista, de 1997 e 1998 respectivamente não sejam negligenciáveis, são a meu ver demasiado à maneira de Saul Below. Destacaria finalmente o ciclo mais recente onde se evidenciam, sob o signo do envelhecimento e da perda, os romances, O Animal Moribundo, Indignação, Humilhação e Nèmesis. Os temas deste ciclo final não apareceram de súbito na cabeça do autor pois, em boa verdade, ele já os tinha abordado em obras mais antigas como nos textos Homem Comum ou O Fantasma Sai de Cena onde já se enunciavam e exploravam os temas do fim da vida com todas as suas misérias físicas e espirituais. 25216P16T1

Politicamente Correcto: Inquisição e ditadura

Philip Roth é um autor fácil de ler, pelo menos para mim, mas muito menos fácil de analisar, aliás muito difícil mesmo. Vou contudo tentar fazer o inventário das linhas de orientação do programa de Philip Roth, qual a intencionalidade pragmática e problemática da sua narrativa e as coordenadas ideológicas diluídas na poética da comunicação, desde logo neste livro mas também no conjunto da sua obra, a partir dos textos que estão ao meu alcance na Biblioteca Central de Macau. Ainda que a sua obra se tenha vindo a estruturar por ciclos distintos tanto no plano temático como até no plano estilístico, não deixa de ser também verdade que persistem, em toda a sua obra literária, elementos comuns e estruturais.
A última fase da sua produção, por exemplo, através dos títulos emblemáticos, Humilhação, Indignação, Animal Moribundo e Nèmesis, constitui, em si mesmo, uma unidade, de preocupações, de significação e de horizonte de sentido claramente mais pessimista que o resto da sua obra, que nunca é contudo senão pessimista. Se numa primeira fase o escritor explorou a temática da sexualidade sobretudo explícita em livros como O Complexo de Portnoy e o Teatro de Sabbath, mais tarde acrescentou-lhe uma linha de orientação que visava a desconstrução sistemática da ideologia americana e toda essa evolução culmina justamente em A Mancha Humana, romance de articulação entre todas as fases e provavelmente a obra que define o autor por antonomásia.
Na fase final, quer dizer actual, os seus temas vão mais no sentido alargado de desconstrução do mal num plano mais universal, o da humanidade, entrevisto numa lógica de fim de ciclo vital. Philip Roth foi assim do particular para o geral, como convém. Nesta inteligente organização dos seus temas e preocupações o autor faz coincidir as suas reflexões finais com a universalidade da condição humana e objectivamente com o seu próprio ciclo de vida. De uma forma que não me parece acidental o autor justapõe o existencial ao biológico, desenvolvendo de uma forma orgânica a evolução da obra homologicamente com a evolução da sua vida numa perspectiva que não anda longe da evolução das próprias civilizações à maneira de Spencer.
Quando li A Mancha Humana, senti interiormente uma imediata satisfação: finalmente alguém escreve de uma forma inteligente sobre a deriva, aliás mais errância que deriva, da orientação da cultura do nosso tempo. Sob a capa da vigilância democrática que mais não é do que um desvio puritano ao sentido da liberdade começa a ganhar terreno uma nova forma de inquisição, muito mais sofisticada que a anterior, mais diluída e portanto não hard mas antes soft, cool mesmo, mais discreta mas no fundo muito mais eficaz e que pode pôr em perigo a democracia e a liberdade. É uma inquisição fria, exteriormente pouco repressiva mas condicionadora no plano íntimo da consciência. Para se tornar mais explícita a mensagem da sua obra Philip Roth convoca imediatamente o exemplo libidinoso de Clinton, num pano de fundo em que se percebem os movimentos fantasmáticos da sórdida intriga, moralista e ridícula. A verdade é que foram muito poucas as vozes que se levantaram contra a sordidez inquisitorial. Num conto das Histórias dos Mares do Sul de Somerset Maugham, já ficou provada a sordidez desses inquisidores, desses objectores de consciência agora entretanto transformados em inquisidores e paladinos da moral. Nesse mesmo ano, um intelectual sério e honrado, um judeu, que afinal não era, é condenado à expulsão de uma universidade por causa de uma expressão que numa acepção poderia ter uma conotação racista, mas que na sua versão mais denotativa e original era incólume.
Os inquisidores são atraídos sempre para onde cheira a sangue ou a esterco. Eles sentem a necessidade disso como uma espécie de alimento para as suas consciências esvaziadas, reduzidas a uma forma. Eles representam o mal radical no sentido kantiano e justamente porque radical, inapreensível pelo comum das pessoas. Eles pervertem a norma na raiz da norma conquanto a respeitem na sua formalidade exterior e visível. Assim fizeram a cama a Coleman Silk e só não a fizeram a Clinton por uma unha negra. Incomoda-me denominar este tipo de inquisição pela ditadura obscena do politicamente correcto, mas a verdade é que não se trata de outra coisa.
O politicamente correcto tem os contornos do preconceito, não é de resto outra coisa senão preconceito, mas pela primeira vez na história a classe esclarecida, a classe culta domina o universo dos preconceitos e faz com ele o que sempre se fez, só que desta vez o preconceito possui um inusitado poder condicionador pois é esgrimido pela mesma classe que historicamente encabeçou todos os combates e se bateu contra os preconceitos. Pela primeira vez na história o universo preconceituoso não aparece solto, fragmentado, esgrimido pela parte da sociedade ultrapassada pelo progresso e pela história, mas aparece sistematizado, como uma ideologia da classe culturalmente dominante e democrática, aquela que rasga os caminhos da modernidade. Essa classe guardiã da justiça, da liberalidade, da saúde colectiva, essa classe securista e protectora, vigilante de todos os dogmas do progresso, começa a exercer no nosso tempo a mais nefasta ditadura de que há memória. É ténue a fronteira entre a liberdade e a repressão.
Quando as forças de rotura real, as forças do progresso, do espírito de emancipação real se ausentam ou entram em crise, a estrutura ossificada da classe dominante traspõe essa fronteira, de modo silencioso e, o horizonte repressivo, aparece então de modo inapelável. Torna-se cada vez mais difícil definir um espaço de liberdade onde a procura da identidade não encontre o obstáculo da ossatura politicamente correcta. E volto a dizer, tudo isto em nome da liberdade, do progresso, das minorias, dos humilhados, dos desprotegidos, os marginalizados, seja de que natureza for.
As personagens de A Mancha Humana esbracejam neste casulo, neste espartilho claustrofóbico. É o caso de Silk entalado entre discursos identitários adversos, pois por puro acidente não é negro, sendo contudo filho de negros, acaba por fugir do ghetto em que sentia que se estava a aprisionar, assume uma identidade judaica, talvez para compensar o sentimento de traição e má consciência e por via desse travestimento acaba por ser julgado como racista anti negro, quando afinal ele mesmo o era geneticamente falando. Faunia que vive o mesmo problema mas no plano social e por isso se envolve com Silk, muito mais velho num plano estritamente sexual, Delphine Roux que abandona o país e os pais para ser autónoma e independente e assim por diante. Todos pagam claro por abandonar o rebanho. Sobretudo todos pagam por não pretenderem ser o que não querem ser no quadro desta irmandade puritana e hipócrita.

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Martins
12 Abr 2016 08:10

material muito importante, muito obrigado pelas dicas, muito grato!