Saúde mental | Profissionais portugueses recordam arranque dos serviços em Macau 

Tiago Alcântara
Na década de 80 eram parcos os recursos em matéria de saúde mental, sobretudo no capítulo da prevenção. Inês Silva Dias recorda o trabalho que foi feito com a comunidade e a persistência junto do Governo para que fosse criada uma lei da saúde mental, projecto que só se tornou uma realidade em 1999. Goreti Lima, psicóloga, destaca o facto de o panorama ter vindo a melhorar, embora se continue a apostar muito numa resposta farmacológica

 

Em 2005, foi inaugurada a Clínica Psiquiátrica da Taipa. Mas a verdade é que o trabalho da Administração em prol da criação de mais serviços de tratamento e prevenção na área da saúde mental havia começado cerca de 20 anos antes. Na década de 80, um grupo de psiquiatras viajaram de Portugal para Macau, tendo sido os responsáveis por criar um serviço integrado de consulta, internamento e acompanhamento comunitário praticamente do zero. À época, faltava uma lei de saúde mental e não havia sequer regime de internato para formar clínicos chineses.

Inês Silva Dias, psiquiatra e fundadora, em Macau, da associação Richmond Fellow, recorda ao HM os primeiros tempos quando percebeu que iria ter muito trabalho pela frente. “Cheguei em 1985 quando a saúde mental e a área da psiquiatria estavam nos primórdios em termos de existência e na forma como estava divulgada junto da população.”

“Estranhei imenso o ambiente que se vivia do ponto de vista da psiquiatria, porque, uns anos antes, tinham construído um edifício que, por falta de quadros difíceis de recrutar, funcionava para outros fins, e a psiquiatria estava lá num canto. Houve dificuldades em recrutar técnicos em Portugal e era tudo ignorado.”

No sector privado, o hospital Kiang Wu tinha encerrado o serviço de saúde mental, porque não dava lucro. As respostas para quem tinha problemas nesta área eram parcas ou nulas.

“Era um momento bastante crítico porque praticamente não havia assistência nessa área. O Governo recrutou então alguns psiquiatras que foram para Macau e começaram a dar os primeiros passos para organizar os cuidados e, numa fase posterior, ter atenção à saúde mental, no sentido da prevenção.”

Chegados a um território onde a maioria da população falava chinês, foi preciso recorrer a intérpretes para dar as consultas. Embora houvesse ainda preconceito em relação à doença mental, essa resistência à procura de aconselhamento médico reduziu-se nos casos mais graves. A partir daí, criaram-se situações de aceitação e laços que perduraram.

“Havia o desejo de melhoria sobretudo quando havia doentes graves nas famílias. Na comunidade chinesa, quem tinha familiares com problemas mentais quase que escondia os doentes. Mas quando a situação era disruptiva, no sentido do comportamento, as pessoas procuravam ajuda e tornavam-se receptivas em relação ao tratamento. Fiquei com ligações a doentes que me escreviam já depois de eu sair de Macau”, recordou Inês Silva Dias.

Apoio a toxicodependentes

A certa altura, os serviços de saúde mental viram-se obrigados a responder aos casos de toxicodependência, que na década de 80 eram mais visíveis no território. Numa recente entrevista ao HM, Helena Cabeçadas, formada em antropologia, recordou a fase em que viveu no território e fez trabalho na área da saúde mental e toxicodependência para os Serviços de Saúde de Macau (SSM). Helena, que deu também aulas na então Universidade da Ásia Oriental (hoje Universidade de Macau), recordou a época dos “consumidores de heroína, que era barata e de boa qualidade”, e quando o trabalho era cheio de desafios.

“Era um mundo muito masculino, e havia um registo mais prisional do que terapêutico, o que contrastava com aquilo que eu conhecia em Portugal e nos EUA. Éramos poucos terapeutas e funcionava como um grupo de guardas prisionais. Incomodava-me esse registo porque não estava de acordo com a minha visão [de abordar o problema], que defendia a reabilitação. Em Hong Kong, em contrapartida, tinha contactos muito interessantes do ponto de vista profissional, porque fazia-se ali um trabalho que tinha mais a ver com a minha maneira de encarar esses problemas.”

Augusto Nogueira, presidente da Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau (ARTM), recorda um período do “boom da heroína e do haxixe”, onde o consumidor era visto como um criminoso. “Eram novas experiências e as pessoas não sabiam muito bem como lidar com elas, mesmo a nível terapêutico. Não havia muitos conhecimentos em termos de comunicação e terapia. A droga era vista como algo maquiavélico e a punição era a ferramenta para lidar com o consumo. Havia muitos tratamentos à base da religião e tentava-se ajudar as pessoas com o pouco conhecimento que existia”, contou ao HM.

Antes da chegada da associação Ser Oriente, em 1993, já existia, em Ka-Hó, Coloane, o Centro Desafio Jovem, que propunha um tratamento da toxicodependência com ligação à religião. “A Ser Oriente não tinha muitas relações com o gabinete de prevenção para a toxicodependência [dos SSM] mas depois de 1999 reunimos com o Instituto de Acção Social, onde mostrámos a nossa vontade de permanecer em Macau”, lembrou Augusto Nogueira.

“Depois, com um grande esforço do IAS em dar apoio a associações, conseguimos profissionalizarmo-nos mais na prevenção e ir ao estrangeiro, aprender com o que estava a ser feito lá fora. Desde 1999 passámos de amadores, à base da boa vontade, para algo mais profissional com cabeça, tronco e membros. Deixámos de ter de pedir dinheiro na rua para sobreviver”, disse o actual presidente da ARTM.

A importância da lei

Se faltavam recursos para dar respostas, a lacuna era ainda maior em matéria legislativa. Inês Silva Dias foi uma das vozes que mais lutou para a implementação do regime de saúde mental, que seria implementado a 12 de Julho de 1999.

“As autoridades percebiam que havia a necessidade de responder aos problemas da área, mas também eram capazes de ter preconceitos com a doença mental, como toda a sociedade. Foi preciso um trabalho árduo e persistente para conseguir alterar a situação. Tudo começou em 1985 e penso que tive um papel na sensibilização das autoridades para a necessidade desta lei, que depois ficou em preparação.”

O regime vigora hoje, em conjunto com uma Comissão de Saúde Mental, criada em 2005. No preâmbulo da lei lê-se que já eram prestados cuidados psiquiátricos em regime de ambulatório, internamento ou urgência, sendo que o hospital Kiang Wu havia encerrado “o serviço de psiquiatria e transferiu os doentes crónicos para a Unidade Psiquiátrica da Taipa”. Seria criada, mais tarde, a Unidade de Doentes Crónicos do Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde S. Januário. À data, era “a única unidade prestadora de cuidados psiquiátricos” em Macau.

Pretendia-se, com esta lei, a “reformulação da filosofia da prestação dos cuidados psiquiátricos no Território a partir de uma visão cientificamente actualizada do tratamento e apoio à pessoa portadora de distúrbio mental”, onde os “cuidados psiquiátricos deixam de estar limitados às instituições hospitalares, cuja função primordial era a custódia do doente, e são reorientados para a reabilitação e inserção comunitária da pessoa portadora de distúrbio mental”.

O regime define também os direitos e deveres da “pessoa portadora de distúrbio mental”, tendo sido definidos os regimes de internamento compulsivo e de urgência.

O trabalho comunitário

Inês Silva Dias prefere recordar também o trabalho de campo feito entre 1985 e 1999, sobretudo na ligação com a comunidade. “Para implementar o tratamento e chamar a comunidade a participar nos cuidados, foi feita uma intervenção a nível das estruturas governamentais, mas na altura fundei uma associação, que ainda hoje existe, a Richmond Fellowship, que visava envolver a comunidade civil. Conseguimos criar uma série de estruturas intermediárias para que os doentes mentais não ficassem reduzidos ao espaço hospitalar e às famílias.”

Além disso, a médica psiquiatra ajudou também a fundar, no São Januário, o regime de internato para médicos chineses. “Foi possível criar um internato para a formação de médicos chineses em psiquiatria, que não havia. Isso foi inovador. Estávamos em pleno período de transição e a grande parte da comunidade portuguesa não iria ficar, pelo que era importante formar clínicos. Íamos [para Macau] em comissões de serviço e pareceu-me importante dar formação a médicos chineses.”

A última vez que Inês Silva Dias visitou Macau foi em 2006 e relata uma situação satisfatória em termos de resposta. “O meu desejo era que houvesse uma batalha diária para que a psiquiatria e saúde mental se possam manter visíveis e para que haja um alerta junto das autoridades em prol de um maior investimento em recursos para acompanhar as novas formas de actuação.”

O HM enviou também algumas questões aos SSM no sentido de compreender a evolução em matéria de saúde mental até aos dias de hoje, mas em cerca de dois meses não foi obtida qualquer resposta. A título de exemplo, os SSM criaram, em 2016, serviços ao domicílio na área da psiquiatria para os casos mais graves, além de existir uma consulta externa de especialidade no São Januário.

Medicamentos como resposta

Num debate na Assembleia Legislativa em Outubro de 2020, a secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Elsie Ao Ieong U, garantiu que havia um período de 18 dias de espera para se ter aceso a uma consulta de psiquiatria no hospital ou centros de saúde. A acessibilidade a estas consultas foi considerada “bastante elevada”. Neste debate, a secretária lembrou ainda os subsídios concedidos a associações para a prestação de serviços psicológicos na comunidade.

Goreti Lima, psicóloga e ex-residente de Macau, saiu do território em 2019, mas ainda hoje atende residentes via online. O fecho de fronteiras e a pandemia veio aumentar a procura por ajuda.

“Parte do meu rendimento em Portugal vem de pessoas que estão em Macau numa situação em que não podem sair e precisam de algum apoio psicológico e emocional. Agora sim, é que as pessoas vivem numa bolha.”

Hoje a resposta é maior e até existem mais cursos de psicologia no ensino superior. Mas a tendência, da parte de quem se sente doente, continua a ser, numa primeira fase, a busca pela medicação. “Por norma, quando as pessoas precisam de ajuda, a primeira pessoa com quem falam é com um psiquiatra, que depois medica para que a pessoa consiga dar a volta aos sintomas. Há alguns clínicos gerais que prescrevem alguns ansiolíticos. A abordagem é muito farmacológica”, destaca a psicóloga.

No entanto, “há cada vez mais a tendência para se procurar primeiro um psicólogo, e quando saí de Macau isso era cada vez mais visível”, inclusivamente no seio da comunidade chinesa, onde por norma existe um maior tabu em abordar problemas deste tipo.

“Não sei quais são as necessidades da população neste momento, mas acho que a saúde mental não tem de ser tratada, mas pode ser prevenida. Sinto, em qualquer parte do mundo, que há pouca prevenção na saúde mental. A medicação ajuda, mas não resolve a causa do problema. Se nas escolas, ou junto das famílias, tivéssemos mais apoio [as coisas poderiam ser diferentes].”

Goreti Lima acredita que o cenário hoje é de alguma desconfiança em relação aos serviços psicológicos disponíveis no território.

“Até eu sair, em 2019, procurava-se muito o psicólogo português ou de Hong Kong. Sempre achei que havia pouca resposta, e as pessoas não confiavam no que havia no território. Porque às vezes são pessoas recém-formadas numa universidade privada e não se sente tanta confiança.”

Goreti Lima, que chegou a dar aulas no curso de psicologia da Universidade de São José, relatou que há muitos licenciados que são depois inseridos em instituições sociais ou escolas, “mas não propriamente em hospitais e clínicas”. A medida está integrada na política de aconselhamento que a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude implementa nas instituições de ensino.

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