Procrusto e a banalidade

Hoje Procrusto é rei. Procrusto era um ladrão que prendia as suas vítimas a uma cama e depois lhes esticava os membros quando não eram suficientemente grandes ou os cortava quando excediam os limites do espaço que lhes era destinado. É o símbolo antigo da banalização, da redução a uma medida convencional, da tirania da mediocridade contra os que excedem ou não preenchem os critérios preconcebidos.

Na idade do banal nada nos toca realmente. Mergulhados no imenso fluxo de notícias (reparem que num tempo mais acelerado que o chamado tempo real), somos de tal modo submergidos que os valores têm necessariamente que se esbater e não há tempo para perguntas: a nova informação está aí, nova e fresca, pronta a consumir, um pouco por todo o lado e vinda de todo o lado. Por ser banal, a informação tudo banaliza.

E banaliza, sobretudo, os sentimentos. São irradiações de paixão, de amor, de adultério, de crenças nisto e naquilo, de piedade, de compaixão por si mesmo, de exposição da dor, a todo o momento, a toda a hora, sem limites, nem fronteiras. É por isso que temos tanta dificuldade em sofrer. Não é preciso: o sofrimento tem uma tão excessiva mediatização que já só existe no espaço público, deixou de fazer sentido na nossa própria privacidade. Ninguém sofre porque, na medida em que está em todo o lado o sofrimento alheio, nos sentimos, finalmente, um pouco ridículos. O dito pragmatismo tornou-se num rei que vai nu, mas que ninguém tem a coragem de denunciar, sob pena de desinserção, de não pertença ao esprit du temps. O falso fato do rei nunca foi presentificado como hoje. Nunca noutros tempos se apostou tanto na falsidade, na mentira, na verdade entrecortada, como agora. É o caso paradigmático das revistas cor-de-rosa, as publicações que mais vendem em todos os países. É porque, na realidade, o banal aflige as pessoas. E as vidas dos ricos e famosos são, pretensamente, um passo mais além dos percursos da banalidade. É claro que se trata meramente de uma aparência mas, no mundo contemporâneo, a aparência é o que interessa mesmo às pessoas que têm a sensação efectiva da extinção do real.

Esta extinção está presente sobretudo nos media. Mas não só. Existe nos nossos empregos, existe nos cafés, existe nas conversas pouco fluidas e repetitivas, existe na repetição à exaustão de temas vazios como motivo simples de entretenimento. Ninguém quer avançar nada, não se trocam ideias.

O banal reina como imperador supremo nas nossas vidas. Acabaram as noites no largo, sob as estrelas, quando os homens tentavam seriamente avançar um pouco na concepção que faziam do mundo, de si próprios e das coisas.

Aliás, ai de quem tentar superar um pouco o regime da banalidade. Será olhado como um ser estranho, desviante, até perigoso. Bom mesmo é manter o registo do banal, ainda que sobre ele se façam algumas flores, se modifique um pouco qualquer frase para dizer exactamente o mesmo. Esses são os génios do nosso tempo, os heróis dos poderosos, as estrelas dos humildes. Aparecem nas capas de revistas com afirmações brilhantes, considerações intempestivas do género “sou uma vítima da paixão”, entre garrafas de champanhe e paisagens de castelos.

O pior é que o banal nos faz duvidar de nós mesmos. Da sinceridade das nossas intenções, da bondade dos nossos sentimentos. O próprio mal foi também banalizado e nesse sentido, nesse processo, foi igualmente glorificado. A banalidade representa o mundo dividido em dois, justificando por isso a existência da maldade, da cupidez, da traição barata, da crueldade.

A banalidade é o pântano onde nos movimentamos como crocodilos tristes e desdentados, a charneca enevoada onde nenhum cão gigantesco e feroz alguma vez aparece. O banal é rex, mas pequeno, subtil, abafador das ilusões, assassino das mais legítimas esperanças. Não se trata de um tirano, mas de uma miríade de Procrustos que nos impedem de, noite após noite, ter uma simples, lúcida, clara, sufocante, visão das estrelas que – acreditamos – ainda estão lá em cima, penduradas num certo céu.

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