Un Certain Panassié – Boris Vian

Tradução de Emanuel Cameira

 

Em França, no jazz, a querela dos Antigos e dos Modernos ganhou uma dimensão deveras especial graças à existência de um mago. Desiludido por André Hodeir ter descoberto Parker e Gillespie antes de si, inclinado desde sempre a resistir a qualquer evolução, incapaz de voltar atrás sem perder a face em matéria de palavras tão violentas quanto imprudentes, encerrado num sistema de contradições multiplicadas, o Senhor Panassié(*) consegue dar à discussão estética uma volta um tanto ou quanto particular. Instaurador do Hot Clube de França na companhia de Charles Delaunay, de quem se livrou para reinar sozinho, este profeta de extrema-direita imitando Léon Bloy encontrou à sua frente um Boris Vian inabalável. Fundador de uma seita religiosa («Os Servos de Maria Medianeira»), associada, há algum tempo, aos ritos da Comunidade de Fátima, grão-detector dos endemoninhados, o Senhor Panassié é um personagem que, regra geral, poucos conhecem. Vian, que o apelidava de Palhaço Peine-à-Scier [Difícil-de-Serrar], nunca o levou a sério.

Sucede, por um estranho e bizarro acaso, que esta primeira crónica coincida com o aparecimento de acontecimentos jazzísticos de grande importância, que tentarei relatar: não poderia, de resto, haver melhor introdução.

O jazz (esclareçamos desde já que não se trata da chamada música de dança, mais ou menos melosa, com que os maníacos especiosos da rádio francesa sistematicamente se esforçam para nos dissuadir de tudo o que possa parecer-se, de uma maneira ou de outra, com o verdadeiro jazz) é defendido entre nós, desde há doze anos, pelo Hot Clube de França, o primeiro de todos os Hot Clubes. Organizado de início sob uma certa barafunda, o H. C. F. desenvolveu-se aos poucos, sob o impulso do seu Presidente, Hugues Panassié, e do seu secretário-geral, Charles Delaunay. Até 1940, o todo funciona um pouco mais ou menos. Por volta de 1940, cansado de mudar de opinião todos os anos, Panassié retira-se definitivamente para a província e Charles Delaunay assume, individualmente, a responsabilidade pela defesa do jazz durante a ocupação. Vem a Libertação: tudo recomeça lentamente (e de que maneira!). A revista Jazz Hot reaparece. Estamos em 1947. Após sete anos de inércia, acreditando ter chegado a hora de fazer valer os seus privilégios reais, Hugues O Montalbanês abandona a sua reforma, doutrina os valentes presidentes dos Hot Clubes regionais, infiltra-se no Hot Clube de França introduzindo aí as suas traiçoeiras criaturas e, atacando Charles Delaunay sob pretextos no mínimo ridículos e falaciosos, trazendo o debate para o terreno pessoal, consegue destituir Delaunay do seu cargo de secretário-geral, durante a Assembleia Geral de 2 de Outubro.
Direi uma palavra sobre os pretextos: Delaunay publicou, há poucos meses, um número especial da Jazz 47, inteiramente consagrado ao jazz e à América, e no qual figuravam: 1.º) uma fantasia deste vosso súbdito, ilustrada com uma montagem fotográfica, género surrealista, de Jean-Louis Bédouin, onde, horror!, a cabeça de Zutty Singleton, baterista, emparelhava com o corpo quase nu de Rita Hayworth, e 2.º) a reprodução de um quadro de Félix Labisse, quadro bastante conhecido e deveras despido. Nisto, Panassié gritou escândalo e com os seus dedos, bastante afastados, tapou a cara, corada de alto a baixo. Na verdade, havia na Jazz 47 um excelente artigo de Sartre que – com toda a justeza – tinha primazia sobre o de Panassié. Por outro lado, certos interesses comerciais misturavam-se indecentemente com as motivações do presidente.

Era portanto de se temer que a cisão ocorrida levasse (como diria Madame de La Fayette) ao total desmoronamento do trabalho até então realizado. No entanto, o Hot Clube de Paris, de longe o mais importante, depositou toda a sua confiança em Charles Delaunay no último sábado. Nesse movimento, foi seguido por certos Hot Clubes regionais que desaprovavam as manobras manhosas do Grande Hughes. A revista Jazz Hot continua, como no passado, a ser dirigida por Delaunay. Os concertos da Escola Normal vão continuar, e inúmeros projectos estão ora em estudo, ora em plena realização. Contactar-vos-ei em tempo útil, convocando-vos para esses divertimentos simultâneos, se trouxerem algo para beber.

De momento, é esta a situação. Uma nova era na luta pelo jazz está a começar, e embora seja lamentável ver velhos amigos matando-se em público, é certo que ambas as partes irão redobrar as suas actividades, o que será talvez a ocasião de ouvir um pouco mais de bom jazz e de assistir a espectaculares brigas com golpes de judo à boa maneira de Gillespie.
Outubro 1947

Tradução de: Vian, Boris, “Un certain Panassié” [1947], in Chroniques de Jazz, Paris, Éditions La Jeune Parque, 1967, pp. 271-274.
(*) De Hugues Panassié publicou-se, em Portugal, História do Verdadeiro Jazz (em Outubro de 1964, na Portugália Editora, com tradução de Raul Calado).

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